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Eu e a guerra da Ucrânia em Suape

Luís Augusto Correia de Araújo
Advogado e prático

Publicado em: 04/05/2022 03:00 Atualizado em:

Na minha função de prático no Porto de Suape, que exerço desde a sua inauguração, quando atraquei o primeiro navio no PGL1A, tenho tido oportunidades diárias de frequentar passadiços de navios de origens várias.

A modernidade e a obsessão empresarial dos armadores (proprietários dos navios), por maior lucro, fizeram com que quase 100% dos navios que funcionam nos mares e oceanos tivessem bandeiras de conveniência, e tripulações arregimentadas em países do leste Europeu da extinta União Soviética, da África, Ásia e Oceania. Essas origens deram o grande diferencial aos armadores de uma garantia de mais lucro...

Encontramos tripulações extremamente limitadas de recursos humanos, assim como baixa escolaridade e outras limitações. Até a língua universal inglesa é usada com evidente limitação.

Nesse universo de navios e tripulações de segunda categoria, se comparadas as tripulações do século passado, todas de nacionalidade da bandeira do armador, oriundos do chamado primeiro mundo, a diferença é da água para o vinho.

Esse contingente marítimo tem variedade de nacionalidade enorme. Chegando a seis diferentes numa só tripulação desses navios sem pátria, pois usam bandeira emprestada de países do chamado terceiro mundo. A Libéria na África, as Bahamas e as ilhas Marshal, entre outros, produzem essa esdrúxula “Joint Venture”...

Já encontrei no meu dia a dia de labor marítimo figuras estranhas, inteligentes, bizarras, corajosas, covardes, competentes e incompetentes, mas todos sempre presos a sua memória nacional pessoal. Essa cultura hoje é muito comum, e a convivência a bordo, se procede de maneira tranquila. É a lei do mar, o capitão é o comandante da embarcação, e assim representante do armador do seu navio.

Nesses últimos dois meses tenho ido a navios fretados à Transpetro, braço marítimo da Petrobras. A presença russa e ucraniana nesses navios é grande, na oficialidade e nos marinheiros. Vez por outra um capitão ucraniano comanda o navio e um russo é seu imediato! Outras vezes dá-se o contrário o capitão é um russo. Recentemente, no mês de abril, estive em quatro navios com comandantes assim mencionados. Para mim, desacostumado com guerras e beligerâncias, fiquei sempre naquela curiosidade, meio mórbida, como poderia existir convivência pacífica entre cidadãos cujo países estão em guerra. Chego a pensar se eu ficaria inerte e sem nenhum espírito de vingança em um ambiente assim tão tenso.

Após devaneios vários, fiquei convencido de que essa vida no mar traz um comportamento diferente e mais solidário entre as pessoas. Aprendi com essa convivência que cerca de 60% da população russa e ucraniana está umbilicalmente ligada há mais de um século. Poucos sabem dessa realidade que tornam-se evidentes no dia a dia dessa convivência.

Fiz a manobra de atracação de um navio de nome Cumbia, com um capitão russo, num píer de Suape. Senti extrema tensão do capitão durante toda a manobra. Sabendo da realidade da guerra que assolava seu país, debitei aquele estado emocional a esse fato. Após a manobra já descontraído, me informou que estava muito preocupado pelo fato de sua mãe ucraniana estar em Kiev e seu pai em Moscou de férias, sem puder voltar para sua casa. O fato valeu como justificativa.

Me levou até o portaló como cortesia. No entanto, como russo que era, me disse bem baixinho. “Cá entre nós, a Ucrânia não pode fazer parte da Otan, pois se tornará um vizinho indesejável”. Incrível essa coragem dele admitir que torcia pela Rússia.

Outras histórias semelhantes me foram ditas ou até confidenciadas, mas com certeza essa guerra se verifica entre irmãos, de sangue e alma!

C’est la vie...

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