Pernambuco e o Japão: de Bashô a Bandeira (2)

Rafael Cavalcanti Lemos
Juiz de direito do Tribunal de Justiça de Pernambuco e pesquisador associado à Curadoria de Assuntos do Japão da Coordenadoria de Estudos da Ásia do Centro de Estudos Avançados da Universidade Federal de Pernambuco

Publicado em: 22/04/2024 03:00 Atualizado em: 22/04/2024 04:36

“Quis gravar ‘Amor’ / No tronco de um velho freixo: / ‘Marília’ escrevi.” (Manuel Bandeira [classificado entre os “descendentes de Bashô” por Leminski], “Haicai tirado de uma falsa lira de [Tomás Antônio] Gonzaga”).

“[I]niciador do movimento modernista” no Brasil, Manuel Bandeira foi, sem “o abandono dos ritmos tradicionais”, “quem primeiro entre nós empregou o verdadeiro verso livre” (Sérgio Buarque de Holanda). No poeta recifense via Álvaro Lins o “privilégio […] de exprimir um máximo de poesia num mínimo de palavras”. Em crônica publicada n’A Manhã do Rio de Janeiro em 29 de maio de 1943 (a título de curiosidade, ao lado dum texto de Gilberto Freyre, “A propósito de palavras”), Bandeira declarou-se “muito afeiçoado à minúscula forma fixa da poesia japonesa”, afirmou que “ficar[ia] japonicamente ortodoxo” nos haicais que escrevesse, “não os fa[zendo] rimados”, e deixa conhecer haver tido contato com os elaborados por Bashô (a quem cognominava “mestre dos mestres, o grande, puro, imortal”) por meio não apenas da “Histoire de la littérature japonaise des temps archaïques à 1935” de Matsuo Kuni (citado no periódico como “seu [de Matsuo Kuni] livro sobre a literatura japonesa” e referência desde 1940 nas “Noções de história das literaturas” do pernambucano, então catedrático interino da disciplina no externato carioca Pedro II) senão também do florilégio por este (Matsuo Kuni) e Émile Steinilber-Oberlin intitulado “Haïkaï de Bashô et de ses disciples”, obras cuja versão francesa de cinco poemas Bandeira (republicados em “Poemas traduzidos” os quatro últimos) transverteu ao português, um deles com transcrição fonética (dita “r%u014Dmaji”) do japonês ao alfabeto latino: “O outono aprofunda-se: / Que estará fazendo / Agora o vizinho?” ou (nas bandeirianas “Noções”) “Aprofunda-se o outono. / Que faz / O vizinho?” (“Aki fukaki / Tonariwa naniwo / Suruhitozo”) // “Quatro horas soaram. / Levantei-me nove vezes / Para ver a lua.” // “Fecho a minha porta. / Silencioso vou deitar-me. / Prazer de estar só.” // “A cigarra. Ouvi: / Nada revela em seu canto / Que ela vai morrer.” // “Quimonos secando / Ao sol. Oh aquela manguinha / Da criança morta!”.

Sublimando as “palavras ordinárias” referidas por João Rodrigues “a um nível estético elevado”, Bashô teria criado “um lirismo inédito nas letras japonesas” (Teiiti Suzuki). Para o filósofo teuto-coreano Byung-Chul Han (trasladado em português por Lucas Machado), no entanto, “os haikus […] não são uma ‘expressão’ da ‘alma’. Antes, se deixam interpretar como uma visão de ninguém. Não se deve extrair deles nenhuma interioridade. Nenhum ‘eu lírico’ se expressa. Também as coisas do haiku não são impelidas a nada. Nenhum Eu ‘lírico’ inunda as coisas, fazendo delas, desse modo, metáforas ou símbolos. Antes, o haiku deixa que as coisas brilhem em seu assim-ser. O não-ser-impelido como disposição fundamental do haiku aponta para o coração em jejum do poeta que, na qualidade de ninguém, espelha o mundo em si mesmo. […] A errância constante de Bash%u014D é uma manifestação de seu coração em jejum, que não se prende a nada, que não agarra nada com os dentes. […] O luto [‘Trauer’] de Bash%u014D […] não tem o peso opressor da ‘melancolia’. […] Esse luto […] é a disposição fundamental do seu coração que habita lugar nenhum e que sempre se despede”. Serenidade (“Heiterkeit”) iluminada.

Bibliografia em https://ceasiaufpe.com.br.

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