Pernambuco e o Japão: de Bashô a Bandeira

Rafael Cavalcanti Lemos
Juiz de direito do Tribunal de Justiça de Pernambuco. Pesquisador associado à Curadoria de Assuntos do Japão da Coordenadoria de Estudos da Ásia do Centro de Estudos Avançados da Universidade Federal de Pernambuco.

Publicado em: 23/04/2024 03:00 Atualizado em: 23/04/2024 05:52

Em 31 de março de 1854, encerravam-se com o Tratado de Kanagawa duzentos e quinze anos de política isolacionista japonesa, iniciada um lustro antes que, em 1644, nascesse Matsuo Kinsaku (na antroponímia de seu país, o sobrenome antecede o nome) – transcurso o 37º aniversário natalício, Bashô (i.e. Bananeira, que havia uma perto de sua cabana) o nome literário. Enxertada durante o século XIX na terra em que se põe o sol, a arte tradicional do Japão frutificou a ocidental moderna, cuja origem desvelavam com o epíteto de japonismo os críticos (Philippe Burty, em 1872, o primeiro destes), o qual teve seu apogeu entre 1880 e 1920 na França.

Já em 1604, contudo, registrava o jesuíta (português da noningentenária Sernancelhe) João Rodrigues em sua “Arte da lingoa de Iapam”: “Ha ha sorte de versos a modo de Renga que se chama: Faicai [‘haikai’], de estillo mais baixo & o verso he de palavras ordinarias, & facetas a modo de verso macarronico, & este modo de Renga, posto que nam tem tantos preceitos como a verdadeira, o numero de versos pode ser o mesmo. E pode começar pello segundo verso de sete sete, que se chama Tçuquecu [‘tsukeku’ ou ‘estrofe adicional’], & continuar com cinco sete cinco.”.

O renga é um encadeamento oral colaborativo improvisado de tercetos alternados com dísticos no qual cada estrofe recolhe uma imagem da anterior, como nos repentes do Nordeste brasileiro. O gênero leve, cômico (em contraposição ao aristocrático), chama-se “haikai no renga”; o poema inicial (de sentido completo), “hokku” e, quando independente, haicai (na ortografia da língua portuguesa) ou (termo cunhado por Masaoka Shiki no fim dos 1800 da Era Cristã) “haiku” (aglutinação de “haikai” com “hokku”), “composto de três versos não rimados, o primeiro e o terceiro de cinco sílabas, o segundo de sete” (Manuel Bandeira).

Como ensina Haroldo de Campos, “[a] inspeção do texto original de alguns haicais […] revela, na sua estrutura gráfico-semântica, a existência de processos de compor e técnicas de expressão […] que só encontram paralelo em pesquisas das mais avançadas da literatura ocidental contemporânea”: a “dimensão visual da poesia japonesa, herdada por via do ideograma, permite-lhe um extremo refinamento de percepção, um grande poder de síntese imaginativa”; “[n]o pensamento por imagens do poeta japonês o haicai funciona como uma espécie de objetiva portátil, apta a captar a realidade circunstante e o mundo interior, e a convertê-los em matéria visível”.

“Remendei minhas calças rasgadas e troquei as tiras do meu chapéu de palha. A fim de fortalecer as pernas para a viagem, me untei de ‘moka’ [moxa] queimada.” (excerto de “Sendas de Ôku”, diário de viagem de Bashô, em tradução de Leminski).

Ex-samurai, funcionário público e alfim professor errante de poesia, Bashô “compreendeu que só se deve amar no mundo as coisas belas e passageiras: as flores, as nuvens, o canto das aves. Pegou do seu bastão de peregrino e partiu na alegria de quem não tem nada senão o poder de tirar de uma vida vivida em pureza e fervor a alegria do canto” (Manuel Bandeira). Seguiu, mas atípico, a tradição, fazendo das formas populares de sua época veículo da mais alta poesia: “Não sigo o caminho dos antigos: busco o que eles buscaram.”.

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