Diario de Pernambuco
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O martírio de Roberta

Moacir Veloso
Advogado

Publicado em: 13/07/2021 03:00 Atualizado em: 13/07/2021 05:51

Embora não conheçamos ainda a história de vida de Roberta da Silva, transsexual covardemente assassinada pelo menor P.D.A.J., sabemos do que se apurou até agora da sua história de morte. Na noite de quarta-feira, 23.6.2021, Roberta estava recolhida ao seu barraco de plástico montado nas imediações do Cais de Santa Rita. Era moradora de rua como milhares de brasileiros que vegetam a céu aberto país afora, vivendo em condições sub-humanas sem ter onde trabalhar, dormir e comer.

Roberta integrava esse enorme contingente humano, denominado excluídos. Estes, tecnicamente, não pertencem à sociedade, política, moral e economicamente ativa. Estão espalhados pelas metrópoles, nas ruas, sinais, calçadas, marquises, viadutos e pontes, tentando sobreviver às custas da caridade pública. Roberta é, portanto, mais uma vítima especial que pertencia a essa multidão de desafortunados. Ela era uma transsexual: pessoa que não se identifica psicologicamente com seu sexo anatômico. Essa situação, por si só, já lhe confere o direito público subjetivo de ser objeto de proteção jurídica pelos legisladores e autoridades competentes.

Como é notório, pois, os transsexuais, de par de outras minorias vulneráveis conhecidas, estão sujeitos a preconceitos materializados em agressões de toda espécie nessa selva urbana, onde levamos nossa vida gregária. Naquela noite, Roberta foi queimada viva, como uma herege na Idade Média, pela ação de um homem de 17 anos, por um motivo provavelmente fútil. Cumpre assinalar que, foram registrados quatro assassinatos de mulheres trans em Pernambuco - Kalyndra, de 26 anos, Pérola, de 37, Fabiana, de 30, e, agora, Roberta, 33 anos e mais 80 em todo país. Isso somente no primeiro semestre deste ano de 2021, segundo relatório da Associação Nacional de Transvestis e Transsexuais.

Como se vê, a experiência demonstra que a matança vai continuar, assim como a taxa de feminicídio não para de aumentar. Em 2020, na Pandemia, foram 1.338 mulheres assassinadas por companheiros, ex-companheiros, namorados, etc... Em relação a 2019, o crescimento foi de 2%. Contudo, a violência contra as mulheres teve seus níveis mais alarmantes no Centro-oeste – 14% e no Norte – 37%. No Nordeste e Sudeste foram 3% e 5% respectivamente. Como se isso não bastasse, a barbaridade que um jovem de 17 anos, apto a votar nas próximas eleições, cometeu ao atear fogo em uma mulher indefesa, sobre todos os sentidos, vai ficar impune.

O fato criminoso vai ser processado e julgado sob a égide da Lei 8069/90 - Estatuto da Criança e do Adolescente. Isso significa que o menor deverá ser ao fim e ao cabo, considerado inimputável por, supostamente, não ter capacidade de distinguir entre o que é certo e errado. Assim chegamos a apenas um exemplo de uma miríade de paradoxos e teratologias que infestam o nosso ordenamento jurídico. O indigitado autor da morte de Roberta tem, segundo preconiza a CF, capacidade política para escolher entre os candidatos a qualquer mandato eletivo e, caso queira, votar nele. Aí chegamos ao absurdo: é imputável para votar e inimputável para matar. Só no Brasil mesmo.

Por oportuno, passo a transcrever a parte final do artigo Aprovação da Redução Maioridade Penal, publicado neste prestigioso Diário de Pernambuco em maio de 2015: Àqueles que se opõem à redução da maioridade penal, indagamos por que quase toda população do país se manifestou a favor dela? Entendo que a principal razão é a seguinte: ela cansou de assistir impassível, o noticiário diuturno dando conta das barbaridades cometidas pelos maiores de 16 anos. Por final, senhores leitores, sabe o que vai acontecer com ele? Deverá ser determinada a sua internação numa das unidades da FUNASE por um período que não poderá ultrapassar três anos. Isso significa, que a família de Roberta poderá cruzar com P.D.A.J. caminhando livremente pelas ruas.

Roberta, sua morte não foi em vão. Hoje, após décadas de sofrimento, a comunidade LGBT e afins estão fazendo história, organizando-se politicamente através de diversos grupos de pressão, e ainda veremos resultados positivos dessa luta heroica implementada por essas minorias obstinadas por justiça, que vêm sendo submetidas a maus tratos, assassinatos, estupros, lesões corporais graves e todos os tipos de insulto. Vocês estão contribuindo definitivamente para que o mundo evolua mais rapidamente no seu processo civilizatório.

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