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O Recife que desejamos

Antônio Campos
Escritor, acadêmico e presidente da Fundação Joaquim Nabuco

Publicado em: 10/07/2020 03:00 Atualizado em: 10/07/2020 05:54

Guernica, a famosa de Picasso, retrata a cruel destruição de uma cidade. Para destruir Guernica foi necessário um bombardeio. No Recife, a destruição pode começar, paradoxalmente, por construções. Como a que se anuncia no bairro de Casa Forte. Resultado, mais uma vez, da união dos interesses privados com a benevolência dos gestores municipais.

Difícil é entender que a Prefeitura do Recife jamais tenha consultado a Fundação Joaquim Nabuco sobre uma obra tão próxima que quase é no seu pátio. Obra tão próxima do Poço da Panela que dá vontade de pedir socorro à Nossa Senhora da Saúde. Os que autorizaram a obra talvez ignorem que ali pertinho está a casa de José Mariano. O mesmo José Mariano que orgulhosamente dá nome à Câmara Municipal.

A omissão de consulta da Prefeitura não se limitou a nada perguntar à Fundação Joaquim Nabuco sobre uma obra que ameaça o patrimônio, pode estrangular as vias e tornar ainda mais difícil o trânsito, o tráfego, o simples ato de viver. Salvo engano, não consultou os que moram e trabalham no bairro de Casa Forte, Poço da Panela e seus vizinhos. Isto pode significar uma destas coisas, ou ambas: que a atual prefeitura trabalha contra o cidadão ou é a ele indiferente.

Há paradoxos que, devido ao contexto, parecem ironias. Quando uma loja se chama Atacado dos Presentes e se insere de modo a causar transtornos numa rua ou num bairro, dá um presente-de-grego. Quanto ao “Atacado” talvez possa se referir mais a ataque do que a simples alternativa ao varejo.

Com sua indiferença ao presente do Recife e, principalmente ao seu futuro, os atuais gestores da Prefeitura parecem entender até os nomes dos bairros de modo peculiar. Casa Forte não se chama Forte por acaso. Nomeia uma batalha. A capacidade de resistência do povo recifense. De enfrentar as agressões que sofre a cidade. E não foram poucas, ao longo da história. Agora, trata-se de impedir uma construção que pode afetar o bem-estar de uma comunidade que, mesmo não sendo ouvida pela prefeitura, quer continuar decidindo o seu próprio modo de viver. Bucólica e altivamente.

Há males que vêm para bem? No caso deste, pode servir para que os recifenses comecem a discutir o querem e merecem da cidade. Qual o Recife que desejam. De preferência, sem monstrengos urbanos. Mais guernicas, menos bombardeios.

Se já não dá para corrigir os erros do passado, ainda é possível evitar os do presente que comprometerão o futuro. Isto começa por um planejamento responsável, sério. Por amenizar o caos e não aumentá-lo. Se o Recife não soube como outras cidades crescer, se expandir para fora, que ao menos cesse o seu próprio estrangulamento.

O complexo arquitetônico e histórico campus Casa Forte é de conhecimento público, em procedimentalização de tombamento. Nem isto nem qualquer outro assunto ligado ao patrimônio material ou natural fez a prefeitura analisar com mais cuidado o perímetro de influência da obra. Nenhuma visita de técnico, de engenheiro. Nenhum pedido de informação. A Fundação Joaquim Nabuco, tanto quanto os moradores do bairro de Casa Forte souberam do empreendimento pela imprensa.

Ninguém ama o que não conhece. Quem conhece o Recife não pode ficar parado enquanto começa o ruído do bate-estaca que pode tornar infernal sua vida cotidiana. Que pode piorar o trânsito, afetar a vida de diversas maneiras.

Ao prefaciar o livro já clássico de Jane Jacobs, Morte e vida das grandes cidades, o professor Manuel Delgado afirma: “Esse é o panorama atual: centralização sem centralidade, renúncia à diversificação funcional e humana, deportação massiva de moradores para ser suplantados por outros de maiores posses, imposição de equipados pesados e desastrosos que se amparam em álibis enobrecedores (...) dinâmicas que desembocam numa dissolução do urbano em uma mera urbanização, interpretada como submeter-se incondicionalmente aos imperativos do mercado da construção ou do turismo ou às exigências políticas em matéria de legitimidade simbólica”.

A situação do Recife é muito pior do que isso. Sonhamos com uma cidade melhor. Sem construções destrutivas. Precisamos começar agora a tornar a cidade que queremos uma nova realidade. Um amplo e democrático fórum sobre a cidade deseja precisa ser iniciado. Estaremos nesse debate. E dizemos, parafraseando o grande poeta Carlos Pena Filho: é dos sonhos de homens e mulheres que uma cidade se reinventa.

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