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Um certo darwinismo

Marcelo Alves
Procurador Regional da República e doutor em Direito

Publicado em: 04/03/2020 03:00 Atualizado em: 04/03/2020 08:51

Devemos a Alfred Russel Wallace (1823-1923) e, mais badaladamente, a Charles Darwin (1809-1892) a ideia da seleção natural. Essa seleção favorece a sobrevivência genética das caraterísticas úteis dos indivíduos, características essas que os ajudam tanto a viver como a se reproduzir. Ademais, na natureza e ao longo de muito tempo, a seleção natural produz novas espécies. E aqui chegamos, nós humanos, teoricamente evoluídos, se comparados aos nossos primos chimpanzés, embora eu muitas vezes desconfie que o inverso é o verdadeiro.

Esse “darwinismo” (como tudo isso também restou conhecido) acabou pulando da natureza para a sociedade, por intermédio, sobretudo, do filósofo, sociólogo e antropólogo Herbert Spencer (1820-1903), que reconheceu ter apenas posto “em prática os pontos de vista do Sr. Darwin no que eles se aplicam à raça humana”. Aliás, segundo registra John Kenneth Galbraith (1908-2006), em A era da incerteza (Livraria Pioneira Editora, 1980), “é a Spencer, e não a Darwin, como geralmente se imagina, que devemos a frase lapidar: ‘sobrevivência do mais forte’. Falava ele, não da sobrevivência no reino animal, mas sim da sobrevivência no mundo muito mais exigente, como Spencer o via, da vida econômica e social”.

Spencer foi um escritor fecundo e célebre. Como lembra Galbraith, “seus inúmeros livros tiveram grande influência na Inglaterra, mas nos Estados Unidos chegaram a ser quase uma revelação divina. (…). Spencer tornou-se um evangelho americano porque suas ideias ajustavam-se às necessidades e anseios do capitalismo americano, especialmente às dos novos capitalistas, como uma luva, ou até melhor do que isso”. Graças a Spencer, de uma hora para a outra, ninguém precisava mais sentir-se culpado por sua boa sorte. Ela era o resultado inevitável da própria capacidade de adaptação. Todo aquele que tinha sucesso na vida era simplesmente premiado pela sua própria excelência. Ao desfrute da riqueza, foi assim acrescentado o prazer, talvez até maior, de saber que esse gozo era merecido, sem culpa, simplesmente porque se era melhor. Para alguns: “Viva o darwinismo social”.

Só que isso, meus amigos, ao longo da história, acabou nos trazendo alguns problemas. Basta mencionar o nazismo e a ideia de pureza e superioridade de raça. Aliás, nesse processo de seleção, através do qual a humanidade estaria sendo purificada e melhorada, ninguém poderia mexer, a não ser que fosse para acelerá-lo: leia-se eugenia, como forma de seleção humana artificial. E nós sabemos as barbaridades que aqueles “puros”, de raça, vieram a praticar.

Hoje em dia, eu vejo por aí, sobretudo entre pessoas de meia idade, muitos “darwinistas sociais”, seguidores tardios, mesmo sem o saber, do tal Spencer. Acreditam-se melhores porque “tiveram sorte na vida”. Desprovidos de qualquer sentimento de solidariedade, são contra os pobres. Os índios. Os portadores de necessidades especiais. Os idosos. As empregadas domésticas. São contra, boquirrotamente contra, o que eles não são a favor.

Curiosamente, muitos deles nunca precisaram, enfrentando as dificuldades que a vida dá, lutar/trabalhar para sobreviver. Nem mesmo quiseram, já que, nascendo em uma família “remediada”, seria uma obrigação buscar ser melhor hoje do que foram ontem. E, para além disso, são antropologicamente ignorantes, porque desconhecem que o que nos fez evoluir como espécie homo sapiens não foi sermos fortes fisicamente (os neandertais eram muito mais), mas, sim, uma revolução cognitiva que nos ensinou a cooperamos uns com os outros.

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