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Jornalismo, humanismo

Mario Helio
Diretor de Memória, Cultura e Arte da Fundaj

Publicado em: 03/03/2020 03:00 Atualizado em: 03/03/2020 08:37

Uma pessoa assim não devia morrer. Nem com seis, nem com sessenta, nem com seiscentos anos. Poderia alguém escrever, simulando uma paródia de Maiakovski. A respeito de quem se pode eleger para estar naquela estirpe especial: dos que merecem viver sempre, ou, quando impossível, não apenas ser lembrados, mas ressuscitados. Um pensamento semelhante ocorreu a Miguel Hernández quando pensou fazer ‘regressar’ o seu amigo Ramón Sijé.

Quando, ‘de repente, não mais que de repente’, chega ‘a Indesejada das gentes’, alguns fazem elegias. outros, panegíricos. Ainda outros, retratos escritos. Uma síntese boa disso tudo está nos versos finais do poema Improviso ordinário sobre a Cidade Maravilhosa, de Ferreira Gullar:

“Amigos morrem, as ruas morrem,as casas morrem. Os homens se amparam em retratos. Ou no coração dos outros homens.”

Exatamente na Cidade Maravilhosa, na Livraria da Travessa, nesta terça-feira, 3 de março, os jornalistas Ana Farache e Paulo Cunha lançam o seu livro sobre o mais que saudoso, inesquecível Geneton Moraes Neto. Geneton – viver de ver o verde mar (Cepe, 2019, 248 páginas).

É livro que merece ser lido não apenas pelos que conheceram Geneton e suas reportagens, entrevistas publicadas em jornais e livros. Por todos os interessados num tipo de texto que nunca se contenta com ser o mero registro frio de acontecimentos ou a opinião frouxa sobre coisas e loisas.

“Sem a loucura o que é o homem mais que a besta sadia, cadáver adiado que procria?”, escreveu Fernando Pessoa. Troque-se ‘loucura’ por ‘paixão’, ‘amor’ e seus derivados e tem-se um tipo de profissional no jornalismo que, como já havia notado Geneton Moraes Neto, está quase em extinção.

Nele – Geneton – a paixão pelo jornalismo aconteceu muito cedo. Para entender o grau de precocidade basta dizer que, ao falecer contava 60 anos de idade, e destes havia dedicado ao jornalismo pelo menos 46 anos. Duvidam? Uma pequena viagem no tempo pode facilmente desfazer o ceticismo.

No texto O pedestal verde-amarelo, o quase menino Geneton une a mitologia e o máximo ufanismo para festejar o tricampeonato do Brasil em 1970. O artigo foi publicado no dia 18 de julho de 1970. Saiu no Diario de Pernambuco, no Suplemento Júnior, dirigido na época por Fernando Spencer.

“Mostramos ao mundo todo que o Brasil representa muita coisa, inclusive uma crescente potência. Analisando-se minuciosamente os fatos, achamos as razões que me levaram a afirmar o que acima foi dito, pois, afinal, as influências existem. Naquele 21 de junho, Deus desceu das alturas para a maior festa que houve na América. Surgia assim mais um dia na história do Brasil. Até 74, no tetra.”

O tetra não veio na Copa seguinte, e o Brasil teimosamente decidiu adiar aquela profecia por vinte anos. O “profeta”, cinco dias de publicar o seu artigo, havia completado 14 anos de idade.  Estava no quarto ano do Ginásio Carneiro Leão.

A capacidade de analisar “minuciosamente os fatos”, e encontrar as razões para as suas afirmações definia ali uma vocação. Num dicionário todo livre, como o de Ambrose Bierce, ou até melhor, como aqueles que os modernistas se divertiam em inventar, no verbete Repórter, bastaria escrever Geneton, e ter-se-ia uma precisa definição. Repórter e Geneton foram uma coisa só por décadas.

Jornalismo e humanismo. Mais do que a rima fácil, no livro de Paulo Cunha e Ana Farache uma coisa está na outra como unha e carne. É livro de Paulo e de Ana, mas também de Geneton, que está quase como um terceiro autor, tal a rica e correta profusão de trechos do personagem-tema. Trechos de textos, e muitas fotos, que tornam esse livro um retrato de corpo inteiro e vivo de Geneton. Informa, faz pensar, inspira e comove um leitor que busque personagens autênticos. Por isso mesmo não será exagero citar mais uma vez o velho Whitman: “Camarada, isto não é um livro. Quem toca nele toca num homem”.

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