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Coronavírus e hábitos sociais

Maurício Rands
Maurício Rands, advogado formado pela FDR da UFPE, PhD pela Universidade Oxford
opiniao.pe@diariodepernambuco.com.br

Publicado em: 02/03/2020 03:00 Atualizado em: 02/03/2020 10:11

Há quem afirme que os números do Covid-19 seriam muito mais altos. Os chineses teriam abafado a epidemia por meses. Outros, receptivos a teorias conspiratórias, acham que o alarme mundial faria parte de planos dos EUA na guerra comercial contra a China. Ou que alguém estaria especulando nas bolsas com títulos chineses.  O fato é que o vírus por aqui já tem dois casos confirmados. O Ministério da Saúde e os estados já pedem reforços orçamentários para combatê-lo. Nosso sistema de saúde já acumulou experiências vitoriosas de contenção de vírus nos casos do Sars e do H1N1. Mas não custa prevenir. Porque a dinâmica da possível pandemia ainda é incerta.

Em outro front, surge a discussão sobre como a ameaça da doença vai repercutir em nossos hábitos. Entre os atributos do povo brasileiro estão a afetuosidade, a espontaneidade e o calor humano. Temos hábitos de contato corporal que são estranhos para outros povos. Os dois beijinhos na face, o abraço seguido do tapinha nas costas, o falar tocando o interlocutor. Hábitos sociais que para um inglês, americano ou japonês soam como invasão de privacidade. Para essas culturas, existe uma bolha imaginária ao redor de cada ser humano cujos limites não devemos penetrar. Em contraste com nossos hábitos, os especialistas brasileiros estão recomendando que evitemos falar muito próximos dos outros, abraçá-los ou beijá-los. Para não falar das dicas mais convencionais de só espirrar no lenço descartável ou no antebraço, nunca na mão. Ou de lavar frequentemente as mãos. Dicas que já deveriam estar incorporadas em nossos hábitos para evitar a proliferação de tantas viroses no nosso dia a dia. Hábitos que se sedimentaram quando não vivíamos tão aglomerados e pouco viajávamos. Hoje a circulação é ampla e intensa. Sempre em aeroportos ou rodoviárias lotados. Frequentamos muitos eventos que nos aglomeram, nos quais estão presentes muitos vírus, sempre em mutação. O nível das nossas imunidades vai determinar se seremos contagiados ou não. Mas os nossos hábitos podem facilitar ou dificultar o contágio.

Por isso, o alerta contra o Covid-19 já está fazendo muitos mudarem o jeitinho afetuoso de ser brasileiro. Chegou a hora de mudarmos a forma de cumprimentar? Os tradicionais beijinhos na face de todos que encontramos estarão com os dias contados? Na Índia, apesar da proibição das práticas contra os dalits (antes chamados ‘intocáveis’) constar do art. 17 da Constituição de 1950, permanece o estigma de que os membros das castas superiores (Brahmans e outros) seriam poluídos se os tocassem. Estima-se que existem 200 milhões de dalits. Esses estão num extremo no contínuo dos hábitos sociais de contato físico. Brasileiros e italianos, com os dois ou três beijinhos no rosto, estão no outro extremo. Nossa grande capacidade de adaptação provavelmente vai aceitar mudar alguns hábitos para estancar a epidemia do Covid-19. Aliás, já era tempo. Porque gripes e outras viroses matam. Sobretudo idosos e outras pessoas com menos resistência imunológica ou que vivem em locais com baixas condições sanitárias. E que diariamente se locomovem em ônibus superlotados. De pessoas, mas também de vírus. Fica a pergunta. Onde vamos nos situar entre os extremos dos ‘intocáveis’ indianos e a nossa atual intimidade generalizada?

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