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Prisão em 2ª instância

Maurício Rands
Advogado formado pela FDR da UFPE, PhD pela Universidade Oxford
twitter: @RandsMauricio

Publicado em: 21/10/2019 03:00 Atualizado em: 21/10/2019 05:01

Na próxima 4ª feira, o STF vai julgar a constitucionalidade e o alcance do art. 283 do Código de Processo Penal à luz dos princípios da presunção da inocência e da efetividade da lei penal. Vai fixar tese sobre a execução antecipada da pena privativa da liberdade.

O Brasil acaba de passar por uma catarse com a prisão de tubarões da política e da economia pela Lava-Jato. Algo positivo em si, por ir contra a cultura da impunidade. Mas os erros dos seus operadores também trouxeram prejuízos à luta contra o crime. Alguns dos tubarões pegos pela operação continuam riquíssimos e cumprindo pena no conforto de suas mansões. Para eles saiu barato, inclusive com patrimônios pessoais quase incólumes. As gravações do Intercept mostraram a combinação do juiz com os procuradores. Aí ficou difícil afastar a percepção da parcialidade. Tudo isso enfraquece uma operação que, no balanço, traz mais benefícios do que prejuízos na luta contra a impunidade. Esse o pano de fundo que paira sobre o julgamento do STF. Ele vai afetar desdobramentos da Lava Jato.

Em fevereiro de 2016, o STF passou a admitir a prisão após o julgamento da 2ª instância. Com os votos de Teori Zavascki (então relator do HC), Edson Fachin, Roberto Barroso, Luiz Fux, Dias Toffoli, Carmen Lúcia e Gilmar Mendes. Ficaram vencidos na ocasião os ministros Lewandovski, Marco Aurélio, Rosa Weber e Celso de Mello. Em seu voto, o ministro Zavascki foi feliz ao fundamentá-lo: “A retomada da tradicional jurisprudência, de atribuir efeito apenas devolutivo aos recursos especial e extraordinário (...) é, sob esse aspecto, mecanismo legítimo de harmonizar o princípio da presunção de inocência com o da efetividade da função jurisdicional do Estado. Não se mostra arbitrária, mas inteiramente justificável, a possibilidade de o julgador determinar o imediato início do cumprimento da pena, inclusive com restrição da liberdade do condenado, após firmada a responsabilidade criminal pelas instâncias ordinárias”. Que, acrescento, são a sede onde se analisam os fatos, as provas e a materialidade do crime. No STJ e no STF discutem-se apenas eventuais erros de direito. Em casos de injustiça ou excesso das duas anteriores instâncias, o réu pode manejar medidas cautelares atribuindo efeito suspensivo aos recursos extraordinário e especial. Pode, assim, evitar a prisão manifestamente abusiva enquanto esses recursos não são julgados. Trata-se de inverter a lógica atual. Ao invés de adiar por largo prazo o cumprimento de todas as decisões penais condenatórias, o adiamento poderia ser feito excepcionalmente somente nos casos de erros graves.  

A melhor hermenêutica constitucional busca harmonizar princípios quando eles se apresentam em tensão. No caso, temos, de um lado, o da presunção de inocência. De outro, o da efetividade da lei penal para que não haja impunidade. Os preceitos constitucionais não podem ser interpretados isoladamente. Fazem parte de um sistema, um conjunto cuja interpretação deve buscar harmonizá-los. Aliás, o princípio da presunção da inocência sempre esteve na constituição e nem por isso o sistema deixou de admitir as prisões preventivas e provisórias. Antes, portanto, do trânsito em julgado da sentença condenatória. O art. 5º, LVII, diz que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”. Ali não está dito algo como “ninguém cumprirá pena de prisão decretada na sentença de 1ª instância até o trânsito em julgado da sentença condenatória”. Ao permitir o início da execução da pena de prisão logo após a decisão de 2ª instância, a jurisprudência restaurada por Teori Zavascki em 2016 não deixou de respeitar os princípios constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e da presunção de inocência. Nesse novo julgamento, o STF pode ratificar a literalidade do art. 283. Mas pode também conferir uma interpretação que o harmonize com outros princípios constitucionais assecuratórios da efetividade da lei penal. Por isso, penso que as razões então esgrimidas por Zavascki permanecem válidas e representam a melhor interpretação constitucional do tema. Se prevalecerem no julgamento da próxima 4ª feira, estarão ajudando o país a superar a cultura da impunidade.

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