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'Só agora meu trabalho está sendo realmente reconhecido', diz Lia de Itamaracá, aos 75 anos

Publicado em: 16/11/2019 15:48 | Atualizado em: 12/08/2020 14:18

 (Foto: Bruna Costa/DP Foto)
Foto: Bruna Costa/DP Foto


Maria Madalena Correia do Nascimento procurava sua caixa de maquiagens e acessórios quando a reportagem do Diario chegou em sua casa, certamente o local mais famoso da praia de Jaguaribe, na Ilha de Itamaracá, Litoral Norte de Pernambuco. Ela se sentou na frente de um banner estampado com uma foto na qual aparece ao lado de Roberto Carlos, e já respondia algumas perguntas enquanto se arrumava: “E as suas unhas? Por que estão sempre pintadas de branco com bolinhas coloridas?”. “Eu vi essa pintura em Dancin’ days e nunca mais parei de usar”, respondeu. Maria admira “O Rei” da Música Popular Brasileira, uma novela da TV Globo exibida nos anos 1980, entre outras coisas comuns a uma brasileira de 75 anos. Mas após dez minutos, quando colocou uma faixa na cabeça, ela transmitia a imensidão da imagem de Lia de Itamaracá, Patrimônio Vivo de Pernambuco.

Logo após retornar de uma temporada de shows no Rio de Janeiro, a cirandeira mais célebre do Brasil conversou sobre o álbum Ciranda sem fim, o terceiro de sua carreira e lançado nas plataformas digitais na sexta-feira. Também falou sobre a valorização da ciranda, a falta de incentivo à cultura e o momento da sua carreira, que atingiu o ápice após 60 anos de estrada. “É agora que meu trabalho está sendo realmente reconhecido”, diz. Tem motivos para tal afirmação: além da música, Lia está na literatura com dois livros sobre sua trajetória recém-lançados, no cinema com o premiado Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, e até na moda, sendo inspiração para uma coleção da Rush, grife de moda praia. Também recebeu o título de doutora honoris causa da UFPE e de cidadã de São Lourenço da Mata.

CONCEPÇÃO
 (Foto: Bruna Costa/DP Foto)
Foto: Bruna Costa/DP Foto


A história do novo disco começa em 2017, quando a cirandeira fez uma participação especial no show do rapper Rincon Sapiência no festival No Ar Coquetel Molotov. Foi lá que a produtora cultural Ana Garcia, responsável pelo evento, aproximou-se de Beto Hees, empresário de Lia. Após conversas, convidaram DJ Dolores para a produção e inscreveram o projeto no edital Natura Musical. O resultado explora a principal manifestação artística da cirandeira, mas impressiona ao passear por boleros e bregas setentistas com roupagens contemporâneas, a exemplo de O relógio, sucesso na voz de Altemar Dutra, e Apenas um trago, de José Ribeiro.

“São músicas que eu ouvia no rádio e nas festas de padroeiro. Eu ia para muitas festas. Mas nunca vou deixar minha praia, que é a ciranda”, diz Lia. “Está todo mundo perguntando ‘cadê o CD? Já saiu?’. Já veio até gente aqui em casa para comprar. Eu disse: ‘tá com a moléstia, ainda nem saiu’”, conta, aos risos. Lia acompanhou a escolha do repertório, participou da montagem das faixas desde a composição da ideia. A faixa-título e Desde menina são biográficas, relembram o ofício de merendeira, desempenhado por quase 30 anos numa escola estadual. Uma audição pública foi realizada na noite de sexta no Pátio de São Pedro, enquanto o show de lançamento será no Coquetel Molotov, realizado no dia 16 de novembro, no Caxangá Country & Golf Club, no Recife.

CADÊ A CIRANDA?
 (Foto: Bruna Costa/DP Foto)
Foto: Bruna Costa/DP Foto


Ciranda sem fim também é um álbum que, assim como A mulher do fim do mundo (2015), de Elza Soares, tenta aproximar uma lenda popular do público jovem. Prova disso é a faixa Lua ciranda, que uma pegada "cool" e cheia de sintetizadores. "O jovem precisa conhecer a cultura, conhecer os mestres. No passo que as coisas estão, eles podem não conhecer a cultura. Querem acabar com a cultura”, lamenta. “A cultura do Recife mesmo… está um horror. Mas não tem jovem perdido. Eles estão interessados, principalmente aqueles que me ‘arrodeiam’.” Ela segue com críticas às políticas do estado em relação à ciranda. “Não sei o que está acontecendo com esses gestores. Tem tantos cirandeiros que podem ser ajudados. Eu estou no centro da ciranda, tenho esse privilégio. Também tenho minha aposentadoria da escola e sou Patrimônio Vivo. Mas quem não tem isso? E quem vive da cultura para sobreviver? O Pátio de São Pedro era o foco. Cadê os mestres? Estão esperando morrer para valorizar? Tem que levar esse povo para fazer show ali. Dia 10 de maio é o Dia da Ciranda, e cadê a ciranda?”.

ESTRELA DE LIA
 (Foto: Bruna Costa/DP Foto)
Foto: Bruna Costa/DP Foto


O maior desejo dela fica quase no terraço de sua casa: a reforma do Centro Cultural Estrela de Lia. Localizado na praia de Jaguaribe, o espaço aguarda finalização há cinco anos. O deputado Guilherme Uchôa, falecido em 2018, foi responsável por uma Emenda Parlamentar Estadual (260/2014) que destinou R$ 100 mil, através da Fundarpe, para a construção de um espaço para shows de ciranda e coco, atividades sociais e pedagógicas. Até o momento, só existe um grande tenda circular. Segundo a artista, o dinheiro está parado na Prefeitura. Procurada, a Comunicação da administração do município não respondeu e-mail nem atendeu ligações.

“Se eu pudesse, não estaria assim. Quando fazemos shows, é o próprio Beto que coloca dinheiro, traz um som. É muito difícil. Se querem fazer algo por mim, que façam enquanto eu estiver viva, não depois que eu morrer. Eu tive 18 irmãos e ninguém se interessou por música, então não tem ninguém para continuar esse legado”, diz.

Lia também lamenta o abandono da própria Ilha de Itamaracá. Nas décadas de 1980 e 1990, o território era “point” do turismo e do veraneio, que mudou de rota para o Litoral Sul nos anos 2000. “Eu gosto de estar na Ilha, porque ela está se acabando. Se esse óleo cair pro lado de cá, acabou-se Itamaracá”, disse Lia, numa entrevista em 23 de outubro. Na manhã do dia 24, a mancha negra tomou a região o Litoral Norte, como um simbolismo triste das incertezas da Ilha e da própria cirandeira.

 (Foto: Bruna Costa/DP Foto)
Foto: Bruna Costa/DP Foto

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