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TV House of cards: quinta fase é a melhor por colar a ficção na podridão política real Já assistimos: nova fase da série da Netflix torna mais verossímil a vida do casal Underwood

Por: Tiago Barbosa

Publicado em: 29/05/2017 19:01 Atualizado em: 29/05/2017 19:14

Frank e Claire batalham para manter o poder e a presidência. Foto: Netflix/Divulgação
Frank e Claire batalham para manter o poder e a presidência. Foto: Netflix/Divulgação

Às vésperas de estrear a quinta temporada de House of cards no catálogo, a Netflix fez uma jogada de marketing para ampliar o interesse do público pela série. Contratou o fotógrafo oficial de Barack Obama durante a presidência, Pete Souza, para clicar momentos frívolos do personagem de Kevin Spacey, o famigerado presidente Frank Underwood, no metrô, na lanchonete, em pontos turísticos, rodeado de povo. A estratégia era cristalina: tratar como real a figura fictícia da produção original do serviço de streaming. Mas nem precisava. Os treze episódios disponibilizados no canal nesta terça-feira são por si só exitosos em demonstrar como o seriado transforma a narrativa ficcional em uma fonte referencial de práticas da má política abundantes na realidade..

A façanha deriva da vocação política visceral do casal protagonista, Frank e Claire Underwood, interpretada por Robin Wright (diretora também dos dois capítulos finais). A dinâmica afetiva e profissional entre a dupla e o tratamento dispensado à presidência - sempre com foco na manutenção do poder - aguçam a sintonia da trama com imbróglios comuns fora da tela.

Na nova temporada, eles forjam e enfrentam dilemas contemporâneos aos Estados Unidos real, como o confronto da Casa Branca com a imprensa (exacerbado na Era Trump), a intervenção do estado na intimidade do cidadão para combater o terrorismo (resquício do 11 de Setembro) e a intromissão externa em embates eleitorais - mais uma dor de cabeça da atual gestão, acusada de demitir o diretor do FBI para frear investigação sobre a influência russa no pleito de 2016. Outros temas são caros também ao Brasil, como o uso do grampo para desequilibrar o jogo político (a exemplo dos vazamentos da Lava-Jato), a cooptação legislativa pelo executivo e a flexibilidade na soberania popular na escolha dos representantes.

A nova fase flagra o casal Underwood sob o risco de perder a presidência. A imprensa acusa Frank de ter chegado ao poder através de práticas inescrupulosas. O parlamento tenta instalar uma comissão para investigá-lo. As duas frentes de batalha minam a popularidade do presidente, já combalida por uma negociação fracassada em um atentado praticado por uma facção terrorista em solo norte-americano. O cenário torna improvável a renovação do mandato, desfecho previsto pelas pesquisas eleitorais.

Personagens Mark Usher (à esq, com Will Conway) e Jane Davis incrementam o jogo político. Foto: Netflix/Divulgação
Personagens Mark Usher (à esq, com Will Conway) e Jane Davis incrementam o jogo político. Foto: Netflix/Divulgação


Ameaçados pela possibilidade de deixar a Casa Branca, os dois lançam mão de um rosário indecente de artimanhas políticas. E aprofundam a essência do seriado: explicitar como os governantes subvertem o próposito do estado para colocar a estrutura da máquina pública a serviço de interesses particulares. A autopreservação passa pela manipulação do sentimento da coletividade e pela sabotagem do próprio país. A criação do inimigo social, a fabricação do medo e o estímulo à desconfiança entre os cidadãos irrompem em efeito cascata como manobra de distração para desvios éticos e aval a medidas de afronta a direitos elementares, como a privacidade e o voto, pilar da democracia.

Frank está no auge da sagacidade política na arte de operar a partir da sugestão. Em vez de ordenar, atribui interesses próprios aos desafetos para colher resultados como produtos do acaso. A cartilha é estendida à macropolítica, ao criar circunstâncias extremas só sanáveis por medidas radicais, mesmo sob guarida da lei - o receituário evidencia como a dificuldade de detectar a articulação do caos é, na ficção e na realidade, a miopia social com a qual contam os políticos tarimbados na hora de manipular a opinião pública em favor de uma agenda particular. O binômio se completa com a desenvoltura serena e precisa de Claire, cada vez mais instada a níveis elevados de decisão e atuação e à revisão constante da dobradinha com o marido.

A temporada também arrasta para a trama o duelo entre as gerações de políticos, fenômeno global iluminado recentemente pela vitória do presidente Emmanuel Macron na França, considerado o "novo" diante da alternativa conservadora de Marine Le Pen. A série confronta a experiência do casal Underwood com a jovialidade dos Conway na disputa eleitoral pela presidência. Dois novos personagens esquentam o jogo político: Mark Usher, vivido por Campbell Scott (O espetacular Homem-Aranha), um hábil articulador da campanha de Will (Joel Kinnaman), e Jane Davis, Patricia Clarkson (A sete palmos), envolvida com assuntos diplomáticos.

Toques narrativos característicos de House of cards, as pílulas de conversa de Frank com a câmera estão mais enriquedoras e integradas à narrativa na quinta temporada. Elas dosam a reflexão sobre a conjuntura política e ajudam a entender por que a fase atual é a mais forte da série. Passagens quase didáticas e referências a pensadores como Shakespeare e Gore Vidal realçam a tese segundo a qual é da natureza humana a busca incessante pelo poder - entendida além da corrupção para enriquecimento pessoal, tipo ofuscado na série, mas comum no Brasil, como atesta o derrame de dinheiro revelado por delações da JBS e de empreiteiras e ironizado pelo perfil de House duas semanas atrás com a ironia "é difícil competir".

Doug Stamper reflete a volatilidade política do clã Underwood. Foto: Netflix/Divulgação
Doug Stamper reflete a volatilidade política do clã Underwood. Foto: Netflix/Divulgação


A síntese dos diálogos faz a trama transcender o perfil inescrupuloso dos Underwood e denuncia um sistema moralmente degenerado por essência, do qual políticos e cidadãos participam ao compartilhar e desfrutar promessas vazias, desprezar valores como lealdade e descartar vidas sem a utilidade de outrora para tarefas degradantes - e o papel desempenhado por Doug Stamper (Michael Keely), fiel escudeiro de Frank e oportunamente mostrado como leitor de Um conto de duas cidades (clássico de Charles Dickson sobre culpa e vergonha), é elemento elucidativo da volatilidade do poder. Por fim, as pitadas de filosofia descortinam os tentáculos de quem realmente tem dado as cartas na arena política: o dinheiro.

A verossimilhança com a (má) política real deixa House of cards bem na foto. Com ou sem marketing.

Assista ao trailer da quinta temporada:



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