Televisão Análise: Precisamos falar sobre (falsa) morte, Jon Snow O retorno milagroso demole a construção ensaiada pelo falecimento e banaliza o óbito

Por: Tiago Barbosa

Publicado em: 02/05/2016 21:55 Atualizado em: 03/05/2016 12:31

Jon Snow ao lado do "quase" morto Gleen: reviravoltas em Game of thrones e The walking dead. Foto: Montagem/DP
Jon Snow ao lado do "quase" morto Gleen: reviravoltas em Game of thrones e The walking dead. Foto: Montagem/DP

A ressurreição milagrosa de Jon Snow (Kit Harington) na série Game of thrones (HBO) provoca um efeito colateral ao mero interesse dos fãs pela permanência de um personagem carismático nas produções audiovisuais: o uso da morte reversível como recurso para sacudir a audiência desnorteia a essência da trama e contribui para enfraquecê-la enquanto construção mais fiel à própria história e menos suscetível a mudanças súbitas de rumo. Eliminar uma figura querida da obra é, por mais trágico e doloroso, indício de independência do roteiro com relação às pressões dos fãs e deveria atender aos arcos da narrativa em vez de parecer instrumento de barganha para garantir a atenção nos episódios seguintes.

Em Game of thrones, a incerteza em torno de viver ou morrer é - com a licença do trocadilho - vital para ditar os passos seguintes dos núcleos integrantes da série. As mortes inesperadas e o apelo a elas como forma de solucionar impasses políticos e pessoais enfrentados pelos personagens mostram o peso outorgado ao óbito dos envolvidos e ao luto subsequente. No capítulo batizado de Casamento Vermelho (3ª temporada), por exemplo, a eliminação sanguinolenta de uma família inteira vítima de uma emboscada salienta a crueldade dos adversários e desequilibra o jogo de poder no xadrez da guerra pelo trono, redefinido pelo desfalque do clã Stark. As forças envolvidas na disputa passaram a se recompor a partir do destino dos personagens mortos.

Quando os produtores da série decidem matar Jon Snow em uma cena de esfaqueamento coletivo à la Júlio César diante dos senadores romanos, sinalizam o poder da traição e impõem uma modificação necessária aos "incorruptíveis" guardiões da Muralha, conhecidos pelo juramento incondicional ao líder, por eles assassinado. A importância da morte é mensurada pela campanha da sexta temporada, montada em cima da imagem de Snow e sob afirmações veementes da produção em torno do desfecho trágico do protagonista. O retorno milagroso pelas mãos da bruxa Melisandre (Carice Van Houten) - embora factível dentro dos limites preconizados pelo misticismo da série - demole a construção ensaiada pelo falecimento e banaliza o óbito, pois torna a ressurreição uma hipótese concreta e extensível (por que não?) a outros personagens.

Sherlock forja a própria morte. Foto: BBC/Divulgação
Sherlock forja a própria morte. Foto: BBC/Divulgação
A artimanha a respeito do destino de Jon Snow também enseja uma situação nociva à série, comumente associada ao emprego de ferramentas de marketing: o desconhecimento sobre a morte do bastardo dos Stark passou, durante o intervalo das temporadas, a se sobrepor aos aspectos demandados pela própria dinâmica da série. A discussão em torno dos passos de cada núcleo na busca pelo trono de ferro - norte absoluto da história - cedeu espaço a uma questão paralela e recorrente (talvez menos interessante) em tramas novelescas: "ele morreu ou não?".

O suspense sobre a morte de um personagem já havia sido utilizado sob questionamentos em outras séries, como The walking dead (2010-), na qual a batalha pela sobrevivência e o luto no holocausto zumbi são indissociáveis da evolução do comportamento humano submetido a pressões. Protagonista carismático, Gleen Rhee (Steven Yeun) havia sucumbido a um encurralamento dos mortos-vivos e sumiu dos capítulos seguintes. O nome do intérprete chegou a ser retirado dos créditos de abertura do seriado, para espanto dos espectadores. Somente na temporada posterior, foi revelada forma incrível como ele conseguiu escapar do ataque. A manobra dramatúrgica resvalou no simples artifício de deixar ansiosa a plateia e se elevou acima do significado da morte dele para os demais sobreviventes - até mesmo para a esposa, grávida. O regresso esfarelou as cenas de luto e suscitou uma indagação: por que ele foi poupado da morte?

Alexandre Nero simulou morte em Império e A regra do jogo. Foto: Globo/divulgação
Alexandre Nero simulou morte em Império e A regra do jogo. Foto: Globo/divulgação
O falecimento reversível ganhou destaque também em outra produção bem-sucedida na telinha. Na britânica Sherlock (2010-), com Benedict Chumberbatch, o detetive da Baker Street despenca de um prédio na frente do escudeiro Watson (Martin Freeman). Mas escapa diante de um jogo de cena explicado bem depois - embora, novamente, dentro dos padrões meticulosos e inacreditáveis das peripécias do investigador. A fronteira frágil entre morte e ressurreição também pede passagem em um especial de fim de ano do seriado, com a aparição quase onírica do arquirrival de Sherlock, Moriarty (Andrew Scott).

Na teledramaturgia brasileira, dois episódios recentes mergulham no tema - e ambos envolvem o ator Alexandre Nero. Tanto em Império como em A regra do jogo, os personagens interpretados por ele enfrentam a encruzilhada do falso óbito para surpreender a audiência.

O apelo à ideia de manter o público em suspenso enquanto alimenta a especulação sobre um personagem crucial para uma trama pode até ter efeitos práticos porque garante a atenção em tempo integral sobre a obra. Mas o artifício é perigoso quando trai o propósito da história e fragiliza os recursos disponíveis para contá-la. Em Game of thrones, o dilema é iminente: os produtores terão coragem para eliminar qualquer personagem carismático da série à altura de Jon Snow? Ou estenderão a eles a chance de regressar do mundo dos mortos sob clamor dos fãs?

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