MPB "O Brasil está doutorado em ignorância", dispara Maria Bethânia, às vésperas de show duplo em Pernambuco Cantora baiana apresenta nesta quarta e quinta, no Teatro Guararapes, o show "Abraçar e agradecer", em comemoração aos 50 anos de carreira

Por: Luiza Maia - Diario de Pernambuco

Publicado em: 30/09/2015 08:30 Atualizado em: 30/09/2015 11:57

Maria Bethânia assina o roteiro da turnê. Foto: Theresa Eugenia/Divulgação
Maria Bethânia assina o roteiro da turnê. Foto: Theresa Eugenia/Divulgação

Doente, em carta escrita à mão, Maria Bethânia prometeu cantar em dobro. Nesta quarta (30) e quinta-feira (1º), às 21h, no Teatro Guararapes (Centro de Convenções), a cantora cumpre a dívida com os fãs pernambucanos estabelecida no dia 27 de junho, quando, devido a problemas nas vias respiratórias, adiou o show da turnê Abraçar e agradecer. Comemorativo aos 50 anos de carreira, foi gravado em setembro e será lançado em DVD, assim como o recital Maria Bethânia e as palavras.

Confira o roteiro de shows previstos

"Isso é uma coisa baiana. Falei que queria voltar e iria em dobro, porque eu sou zangada. Recife é uma das primeiras cidades que pergunto se está na turnê. Não tenho como explicar muito, mas tenho essa paixão", conta, sobre a cidade inserida no roteiro de todos os shows recentes dela.

Além da apresentação remarcada para o dia 1º de outubro - os ingressos para junho valem para amanhã, e não é necessário trocar - , uma data extra, em setembro, foi anunciada. Devido ao fomento da Lei Rouanet, há o limite de duas noites por local. "Posso fazer até dez, mas por outro preço. Acho uma deselegância duas por R$ 100 e as outras por R$ 1 mil, R$ 800, porque a bilheteria não paga o espetáculo", lamenta.

Os tributos à Abelha Rainha começaram no início do ano e seguem pelo menos até o carnaval de 2016, quando será tema do enredo Maria Bethânia: A menina dos olhos de Oyá, da escola de samba carioca Mangueira. "Acho que exposição, a Mangueira e abrir o carnaval do Recife com os maracatus e Naná Vasconcelos (em 2007) estão entre as maiores homenagens. Mangueira é minha escola desde quando pisei no Rio. Olhei e perguntei 'o que é aquilo verde e rosa?'. É uma homenagem ao meu orixá, à Bahia. Vou desfilar, se Deus quiser", agradece.

Criteriosa e apaixonada por poemas, Maria Bethânia ensaia pelo menos dois meses antes de subir no palco. Abraçar e agradecer tem roteiro assinado por ela, direção e cenografia de Bia Lessa e produção musical de Guto Graça Mel em dois atos nos quais intercala entre as canções oito textos de Fernando Pessoa, Clarice Lispector, Waly Salomão e ela própria.

Composições do irmão Caetano Veloso e de Chico Buarque estão no repertório. Fotos: Mary Debs Comunicação e Christina Granato/Divulgação
Composições do irmão Caetano Veloso e de Chico Buarque estão no repertório. Fotos: Mary Debs Comunicação e Christina Granato/Divulgação

Os pernambucanos Luiz Gonzaga (Qui nem jiló, com Humberto Teixeira), Dominguinhos e Nando Cordel (Gostoso demais) estão entre os compositores contemplados no repertório, além dos recorrentes Caetano Veloso, Chico Buarque, Dorival Caymmi, Tom Jobim, Gonzaguinha e Roque Ferreira e outros mais jovens, como Leandro Fregonesi, Márcia Siqueira e Flávia Wenceslau. São 41 músicas, desvencilhadas do rótulo de retrospectiva e pinçadas entre as mais queridas.

ENTREVISTA // MARIA BETHÂNIA

Você falou sobre a dificuldade de fechar os orçamentos. Como está a situação no Brasil com relação a patrocínios?
Não gosto nem de falar nesse assunto, porque a tristeza é grande. A Lei Rouanet ajuda, alguns patrocinadores ajudam, outros nem tanto. São pouquíssimos os patrocinadores, fora para o Rock in Rio, Copa, Olimpíadas. Quem tem feito um trabalho muito bom no Brasil é a Natura, com artistas maravilhosos, com dignidade, respeito. A Nivea também faz espetáculos lindos, públicos. São esporádicos, de vários artistas, nunca um só. Uma coisa impressionante no Brasil é que a montagem de um show de uma cantora virou valor de ópera. É tudo caríssimo. É um inferno botar um espetáculo de pé, com iluminação, direção, cenografia, banda, técnicos. Um espetáculo inteiro, quase teatral, é muito caro. Todos os espetáculos da minha vida foram esgotados, mas não paga nem metade do valor da noite. Tem que ter patrocinador. E é difícil. Há dois anos, ganho a Pesquisa Marcas de Confiança, do Ibope e revista Seleções: sou a melhor marca musical. Isso é muito importante, porque não é de fãzoca, admirador. É marca, significa que pode confiar naquela cantora.

Desde quando a situação está assim?
Isso vem de muito tempo. É uma imitação americana, todos os objetos, o LED. Não sei explicar. Antigamente, fazia seis meses no Teatro da Praia, de 350 pessoas, e em um mês já estava tudo pago. Agora é valor de ópera. Tá errado. Algumas coisa estão erradas. Ainda mais o Brasil do jeito que está. É difícil que se consiga patrocínios grandes, duradouros. O Brasil ficou assim, mas não precisava. A vida inteira eu fiz espetáculos grandes e dava para fazer. Agora, precisa de dinheiro grande, de fora, que o artista não tem. Eu não tenho.

Noite, dividia em dois atos, tem 41 músicas e oito textos. Foto: Theresa Eugenia/Divulgação
Noite, dividia em dois atos, tem 41 músicas e oito textos. Foto: Theresa Eugenia/Divulgação
Como é a sua preparação para as apresentações?
Ensaio no mínimo dois, três meses. Não consigo subir antes disso. Lógico que participação, recital, eu faço em pouco tempo. Mas meus espetáculos, com história, enredo, não. E tem uma coisa: em todos os ensaios, todos mundo ganha. Músicos, estúdio, instrumentos. Só a cantora que não ganha. Não é uma flor isso? Tem passagem de som para o espetáculos da Música Popular Brasileira. Todo mundo ganha, menos a cantora. Eu acho desregulado isso. Não está certo. Tem que achar outro parâmetro.

Você comemora 50 anos de carreira. Aposentadoria está em cogitação?
Não, não sou funcionária pública. Pago aposentadoria porque sou obrigada. Quando tiver que parar, paro. Vou fazer 70. Não passa pela minha cabeça é ocupada por outras coisas. Quero avançar. Enquanto Deus me der saúde, energia e voz, vou fazer.

O que você tem feito?
São projetos menores, mais off, de ajuda. É um pouco exercício. A minha leitura (Maria Bethânia e as palavras), por exemplo, era um exercício. Estou fazendo o lançamento dela pela Universidade Federal de Minas Gerais. Estou trabalhando em um projeto sobre um autor (Antonio Tabucchi) que viveu em Portugal para estudar Fernando Pessoa. Ele fez um pequeno delírio, Os três últimos dias de Fernando Pessoa. É uma visita aos heterônimos. Estou levantando a possibilidade de mexer também com poesia, em programas feitos em algumas cidades do Brasil e de países de língua portuguesa. Estou lendo contos de Mia Couto, que me pediu para participar de um concurso mundial da ONU. Acabei de fazer uma leitura na volta do quadro Guerra e paz, do Portinari, ao Brasil. Eu não faço só que vai ao palco. Estou pensando em fazer um disco com André Mehmari, de voz e piano, penso nele para fazer uma canção. Adoro o piano dele, é mágico.

Como foi a exposição?
Acho que exposição, a Mangueira e abrir o carnaval do Recife com os maracatus (em 2007) estão entre as maiores homenagens. A cada sábado, no Paço Imperial, um artista se apresentava, de graça. E foi um deslumbramento. Um deles foi André Mehmari. Encerramos com Egberto Gismonti. Não fui em todo, mas sempre que pude.
 
Você tem ido à Bahia?
Moro no Rio desde 1965. Tenho ido pouco depois que minha mãe (Dona Canô) morreu (em dezembro de 2012).

Como recebeu a homenagem da Mangueira?
Mangueira é minha escola desde quando pisei no Rio de Janeiro. Nem sabia. Olhei e perguntei 'o que é aquilo verde e rosa?'. É uma homenagem ao meu orixá, à Bahia. Eles me pediram pra ir no dia 3, para a escolha do samba-enredo. Vou assistir, mas quem opina são os mestres. Vou desfilar, se Deus quiser. Antes, vou fazer dois shows. Eles sempre fazem, no Rio e em São Paulo, com artistas mangueirenses, que são milhares, e os homenageados, antes do carnaval, para arrecadar verbas. Alcione, Chico, Tom, que já morreu, mas sempre faziam.


O que acha da ostentação dos desfiles de escola de samba?
Acho tudo aquilo muito bonito, fora do comum. Sou baiana, a primeira vez que vi quase morri. Não podia entender que chegasse com essa beleza toda. É lindo ver que tanto faz o luxo quando a miséria, eles sempre arrebentam. Quando Joãozinho 30 veio com lixo, farrapo, fez o melhor desfile. Eu sou pobre, então a gente gosta de luxo. É como ele dizia: ‘pobre gosta de luxo, quem gosta de pobreza é intelectual’. A Mangueira, coitadinha, é de tradição, meio pobre. Coitadinha, não. É deusa, primeiro lugar. Só pelos compositores já vale: Cartola, Nelson Cavaquinho.

Você não se considera intelectual?
Eu sou intelectual? Sou não, mas não sou mesmo. Eu sou é abelhuda. Gosto de ouvir, ler, me interessar, entender. Não sou intelectual. Sou puro instinto. Tenho garra, hein? Sou nada intelectual. Meu irmão (Caetano) que é.

Você começou a carreira, há 50 anos, com Carcará. O texto ainda se faz atual?
Porque é. E só olhar o Brasil. Continuamos com miséria, seca, fome, sem educação, sem saúde, miseráveis, excluídos.

No Prêmio da Música Brasileira, o pernambucano Johnny Hooker cantou para você. O que achou?
Um espetáculo. Olha, o que eu me diverti ali. Fiquei muito emocionada. Adorei ele contracenando com Alcione. Muito bom, está de parabéns. Tudo ali foi emocionante, sincero. Caetano emocionado. Foi tudo lindo, os atores, Renata (Sorrah), (Leticia) Sabatella. Foi tudo lindo. A Mônica Salmaso. Ele está aprovadíssimo, mas não precisa da minha aprovação nem de ninguém. Só a dele mesmo e de Deus.

Você já disse ter pena do Brasil. O sentimento mudou?
Eu tenho muita pena do Brasil. Querem fazer o foco do Brasil com algo falso. Gosto do Brasil de dentro, a Amazônia, a firmeza do sertanejo, nobre. Gosto da sabedoria do homem do mar, da alegria do povo, musicalidade, sensualidade, compreensão de que precisa distrair, brincar, que a vida é dura para todo mundo, mas precisa brincar. Quando me vêm disputando negócio de tantos mil no banco, não tem nada a ver com o Brasil. Brasil é natureza. Gosto do Brasil de dentro, sentido, suingado, real, sem vergonha.

Como você enxerga o Brasil hoje?
Difícil, triste e muito complicado, mas não é de agora. Se não educa, só piora. Ontem, ouvi “educação é cara. Experimenta a ignorância”. O Brasil ainda nem saiu da ignorância. Já está doutorado em ignorância. As escolas precisam melhorar, ter prioridade. Em primeiro lugar, aprender, comer melhor, dormir melhor, trabalhar melhor. Sabe ler, escolher. Agora interessa que se saiba? Não vem me enganar, que não gosto. Quero o Brasil fulgurante. A gente é diferente. Por que tem que ser igual?

O que acha da discussão sobre o retorno da ditadura? Você tem receio de que isso realmente possa ocorrer?
Isso é negócio de boquinha miúda, de partidinho de Brasília. Não falo sobre isso. Sou cantora, minha voz quem me deu foi deus. Não gasto com política.

Confira o roteiro do show

Ato 1

1. Eterno em mim (Caetano Veloso, 1996)
2. Dona do dom (Chico César, 2001)
*  Texto de autoria de Maria Bethânia
3. Gita (Raul Seixas e Paulo Coelho, 1974)
4. A tua presença morena (Caetano Veloso, 1971)
5. Nossos momentos (Caetano Veloso, 1982)
* Texto de autoria de Clarice Lispector
6. Começaria tudo outra vez (Gonzaguinha, 1976)
7. Gostoso demais (Dominguinhos e Nando Cordel, 1986)
8. Bela mocidade (Donato Alves e Francisco Naiva, 1997)
9. Alegria (Arnaldo Antunes, 1995)
10. Voz de mágoa (Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro, 2015)
11. Dindi (Antonio Carlos Jobim e Aloysio de Oliveira, 1959)
12. Você não sabe (Roberto Carlos e Erasmo Carlos, 1983)
13. Tatuagem (Chico Buarque e Ruy Guerra, 1973)
14. Meu amor é marinheiro (Alan Oulman sobre versos de Manuel Alegre, 1974)
15. Todos os lugares (Sueli Costa e Tite de Lemos, 1996)
*   Texto Depois de uma tarde..., de Clarice Lispector (1920 - 1977)
16. Rosa dos ventos (Chico Buarque, 1971)
Interlúdio
17. Até o fim (Chico Buarque, 1978)
18. O quereres (Caetano Veloso, 1984)
19. Qui nem jiló (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, 1950)
20. Pisa na fulô (João do Vale, Silveira Júnior e Ernesto Pires, 1957) - Instrumental banda

Ato 2

21. Tudo de novo (Caetano Veloso, 1978)
22. Doce (Roque Ferreira, 2008)
23. Oração de Mãe Menininha (Dorival Caymmi, 1972)
24. Eu e água (Caetano Veloso, 1988)
25. Agradecer e abraçar (Gerônimo e Vevé Calazans, 1999)
26. Vento de lá e Imbelezô eu (Roque Ferreira, 2007)
27. Folia de Reis (Roque Ferreira, 2014)
28. Mãe Maria (Custódio Mesquita e David Nasser, 1943)
*    Texto Câmara de ecos, de Waly Salomão (1943 - 2003)
29. Eu, a viola e Deus (Rolando Boldrin, 1979)
30. Criação (Chico Lobo, 1996)
31. Casa de caboclo (Roque Ferreira e Paulo Dafilin, 2014)
*     Texto Candeeiro, de Carmen L. Oliveira
32. Alguma voz (Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro, 2014)
*    Maracanandé (canto tupi) - na voz em off de Márcia Siqueira
35. Xavante (Chico César, 2014)
36. Povos do Brasil (Leandro Fregonesi, 2014)
37. Motriz (Caetano Veloso, 1983)
*    Texto Prece, de Clarice Lispector (1920 - 1977)
38. Viver na fazenda (Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro, 2015)
39. Eu te desejo amor (Que reste-t-il de nos amours?) (Charles Trenet e Léo Chauliac, 1942, em
versão de Nelson Motta, 2015)
* Texto Sou eu mesmo o trocado, de Fernando Pessoa (1888 - 1935)
40. Non, je ne regrette rien (Charles Dumont e Michael Vaucaire, 1956)
41. Silêncio (Flávia Wenceslau, 2015)

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