De vovô Zeca e de seus hábitos

Vladimir Souza Carvalho
Membro das Academias Sergipana e Itabaianense de Letras

Publicado em: 27/04/2024 03:00 Atualizado em: 27/04/2024 06:06

Vovô Zeca, de pijama completo, charuto aceso, lata de leite ninho para encher de cinza, perna cruzada, cabeça erguida, observava a movimentação da rua, sobretudo da casa vizinha, da filha, tia Marizete, sempre bem povoada, a velha elegância no segurar o charuto e erguê-lo, lentamente, até a boca, para, em seguida, soltar a fumaça, costume que perdurou até quando a saúde permitiu. E o vendo assim, nas noites em que saía da Rua de Maruim para a Avenida João Ribeiro, me vinha lá da infância em Itabaiana a utilização de um ingrediente do charuto, que a gente colocava no dedo e, por alguns instantes, até que o papel rompesse, simbolizava um anel.

O charuto foi sua companhia permanente. Várias fotos assim o captaram, na calçada, às vezes cercado por familiares, outras sozinho, os olhos atentos ao que ocorria a sua frente, o silêncio que imperava pela dificuldade de diálogo, sem abrir espaço para qualquer tipo de conversa, acostumado a solidão da rede em seu quarto, onde se divertia dando corda nos vários relógios, esquecido de já ter feito, e entupido de corda, o relógio pifava, um, dois, três, vários, a velha mania de saber as horas,  o rádio ligado na Hora do Brasil, a reprodução das notícias divulgadas, tim por tim, a veia irônica a denominar o presidente de então de Garrafa azul.

De papai reclamava a dor de cabeça que sempre proclamava quando ia vê-lo, além da falta de pontuação das cartas, em tempos em que as notícias exigiam seu uso. De Carlos Augusto e Alba, que lá apareciam em visitas relâmpagos, a pressa de voltar a Itabaiana, e, então, - e eu ouvia -, a confissão de guardar de Itabaiana a paz da Rua do Sol, o bilhar de Pedro de Delfino, a alusão de ter vendido a casa ao marido da neta por preço que papai fixou, vendido, não, esclarecia, dado.

Cultivava o hábito da morte quando dele me despedia, textuando ser aquela a última vez em que o via vivo. Errou sempre. Demorou a morrer. Primeiro, perdeu a consciência, achando que eu era marido de uma velha e falecida fazendeira de Itaporanga de sua idade. Da saída de Itabaiana, em 1958, só retornou morto, em 1975, para ser sepultado. Não morreu completamente. Ficou em mim o gosto pela fava, o hábito de fazer anotações nos livros lidos, a obsessão pelas horas. Fui, como neto, seu maior herdeiro. Só falta o hábito/vício do charuto, que me recuso a adotar, até agora.

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