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De alguns atos de outros tempos

Vladimir Souza Carvalho
Membro das Academias Sergipana e Itabaianense de Letras

Publicado em: 23/03/2024 03:00 Atualizado em: 23/03/2024 09:05

Se não aprendi a tocar piano, que, ainda hoje, desafia o meu dedilhar, dominei a máquina de datilografia, embora não conseguisse, com toda experiência e rapidez, produzir nenhuma nota musical, uma só, apenas uma, para remédio. Se não me tornei sacerdote para vestir uma batina preta, que achava bonita, ganhei a toga da magistratura, embora com ela não pudesse ir à rua, a compensação entrando pela outra porta por não me proibir de arranjar uma namorada, afinal nunca fiz voto de castidade, e se fizesse, dependendo do desafio, terminaria sem resistir, aproveitando a oportunidade em que o anjo do Senhor estivesse olhando para o outro lado.  

Jogar pelada, o fiz muito, ora no gol; outras, na zaga; outras no ataque, de preferência na banheira, onde fazia gol se a bola caísse nos meus pés e zagueiro algum me atrapalhasse. Uma vez, fui marcado por um rapaz de menos de vinte anos. Corria mais do que eu. Protestei: que fosse marcar alguém da sua idade. O rapaz não foi. Nesse dia, não fiz gol, mas gol fazia, em outras peladas. No fundo, eu representava, apesar da idade, num perigo, porque jogava sem bola, o marcador sem me dar trégua, embora caísse na minha cilada, me acompanhando quando o ataque de meu time ocorria, eu me deslocando para um lado, o marcador no meu pé e o espaço se abrindo para o nosso ataque entrar e marcar gol. Tostão, na Copa de 70, adotou minha tática. Ora, fiz escola. Dida, na Copa de 58, também se inspirou em mim, no pouco em que jogou.

Tocando trompa, a colega do ginásio, na porta da banda, me elogiou, eu desconfiado de que ela não distinguia o tá-tá-tá da marcação que a trompa fazia.  Agradeci o elogio. Não perdi o sono nem acrescentei o fato ao meu currículo. Passei para o trompete, que ainda tenho, embora sem serventia, escurecido pela falta de cuidado. Um dia lhe dou banho de loja. Enquanto isso, me vanglorio da categoria que não tive. Ouço uma música, o piston fazendo o canto. Revelo a quem me ouve: toca igual a mim, no meu tempo, não hoje. Há quem acredite. Mostro como se soprava, assim, segurando o bocal na boca, forçando os dentes, que a gente mexe com os dedos quando tocava muito tempo. E dando a conversa por encerrada, digo que tocava em pé e sentado. Não tinha medo de hérnia. Acho que está na hora de parar. Exagerei na gabolice.

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