O domingo e a jaca

Vladimir Souza Carvalho
Membro das Academias Sergipana e Itabaianense de Letras

Publicado em: 14/05/2022 03:00 Atualizado em: 13/05/2022 23:45

Comer jaca mole não é fato inusitado. Nem o abrir a jaca com as mãos, separando a casca de modo a se deparar com os bagos, todos amarelos, paisagem que, efetivamente, mexe com o coreto da guloseima. Pelo menos, o meu. Deixo de logo anunciado que jaca mole não é minha praia. Acho bonitos os bagos quando se libertam da casca. Acredito que deva ter uns cinquenta anos que comi jaca mole pela última vez. Não mastiguei direito, porque não há o que mastigar, e o resultado foi a sensação de mal-estar que, depois, surgiu, o organismo parecendo que tinha parado, a cabeça doendo, e, mais do que a cabeça, o arrependimento de ter seguido a linha de papai, a devorar jaca como se come pipoca, contando, no final, um por um, os bagos, num total – não minto – de setenta. Depois, rede, e angústia nenhuma, que se concentrou só em mim, no juramento solene de nunca mais colocar um bago de jaca mole na boca, regiamente cumprido.

Contudo, no revolver da terra da memória, o domingo, um em cada ano, se fosse, de tão raro era, de manhã bem cedo, eu, Bosco e Alba saíamos da cama, para comer jaca mole no quintal, todos de garfo na mão, a jaca escangalhada numa pedra. Sob a regência de papai, nos lambuzávamos do grude da jaca, bago por bago, os quatro, acocorados, mais folia do que fome, despreocupados da mastigação correta, os bagos descendo lépidos e gostosos pela garganta, a libertar no chão o caroço, cada um na sua, sem invadir território do outro, a preocupação depois de limpar as mãos, o grude a desafiar o querosene, numa demorada operação na qual o querosene vencia o grude, invocando-se, agora, numa terceira etapa, o sabonete para tirar o fedor que ficava nas mãos. Uma verdadeira epopeia.

Era uma festa, mesmo sem música e sem confete. Ninguém reclamava de sair antes do horário da cama em dia de domingo. O desjejum matinal era aquele, mamãe assistindo de longe, porque não participava dessas extravagâncias alimentares, até que a jaca deixou de ser atração no domingo pela manhã, no que, também, não fez falta, ficando para trás, dando lugar a novos hábitos, outras novidades aparecendo, nenhuma, contudo, que a substituísse, porque, depois dela, os quatro nunca mais se reuniram no quintal para devorar uma outra fruta. 

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