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A mensagem de Raskólnikov

Rodrigo Pellegrino de Azevedo
Advogado

Publicado em: 23/06/2021 03:00 Atualizado em: 23/06/2021 06:08

Estranho, mas verdadeiro. Recebi uma mensagem de Raskólnikov, personagem de Crime e Castigo, de Dostoiévski. O romance, o meu primeiro lido do autor, sempre foi por mim mal interpretado, pois eis que na juventude arrogante, errática e soberba; perdida no turbilhão de leituras caóticas, fez de mim um descrente na redenção.

O personagem, no primeiro capítulo, comete um assassinato e, nos capítulos seguintes, se debate, entre o arrependimento e a justificação. “Raskol” em russo significa “dividido”, e Raskólnikov segue, até que “se condena” em confissão ao juiz Porfiri Pietróvichi, e se redime na pessoa de Sonia que leu para ele a Ressureição de Lázaro.

Desperto, outro dia, com o sinal de um e-mail recebido. De súbito lanço mão da notificação e descubro o remetente: Raskólnikov. Estranhei, imaginando tratar-se de um possível vírus, o que de certa forma até não poderia deixar de ser, mas não o vírus digital, foi realmente uma mensagem que me deixou um tanto quanto atordoado; ela tinha origem, remetente e endereço certos. Era uma mensagem dirigida para mim, o próprio Rodrigo, insone, e, também dividido. Não, não tenho dormido bem. O e-mail veio em boa hora. Por isso o transcrevo.

“Caro Rodrigo, imaginam as pessoas que eu vivo aprisionado pelo meu criador. Escrevo para confessar-lhe que não. O meu fim, no livro, foi de redenção. Não que tenha sido fácil isso, pois todos nós sempre imaginamos que o fim dos nossos livros, sempre nos acabam, nos terminam, nos exaurem à história criada pelo autor. Mas não, meu jovem, não termina assim. Sei que estás atormentado. Existem pecados, não os valoro maiores ou menores. São pecados. Aprendi que a valoração deles pode implicar em justificá-los. São pecados. E não será a condenação ou a vergonha que farão remir a tua pena, mas o seu próprio perdão. Não o perdão cínico, mas o perdão sincero, aquele consigo mesmo. Perdão que não repara a dor alheia quando dos pecados dolorosos a terceiros, mas perdão que te coloca no devido lugar de pecador. Sim, vives num mundo pior que o meu, pois a razão se fez soberba ao ponto de todo nosso epílogo se tornar um final previsível, não humano, um final cínico. Sei que estás atormentado com a falta de desculpas públicas de tantos, o que por certo tempo também te fez incapaz de se reconhecer-te como falho. Mas te digo que isso te condenaria, se assim persistisse. Meu caro Rodrigo, a tua liberdade, tal qual a minha, estará presente no final de teu livro, tal qual no final do meu. Finais abertos e fantásticos, para cada um. Para o pobre, para o rico, para quem viveu em pecado, para quem acha que assim não viveu. Mas espero que saibas que Dostoiévski, meu pai, tornou-me livre. Mais livre que ele mesmo, pois me amava. Entenda, que mesmo condenado pela vida, foi no final, apenas, na última página, aquela página do fim de todas as letras, cuja escrita não mais existirá, cuja mensagem não mais continuará, que sobrevivi. Minhas asas foram plantadas apenas no final, quando me reconheci normal, igual a qualquer um, em nada especial, mas apenas mais um. No fim do meu livro, meu pai não mais me impôs nem “Crime” e nem “Castigo”. Meu pai me libertou. Digo isso para confortar esse teu tormento. Sei que sofres olhando esse mundo de tanta arrogância. E com isso me despeço, apenas para dizer que não, não se deixe acomodar com a autocomiseração, apenas entendas que, somente no final estarás liberto, assim como eu terminei (no final do livro, cujo fim, para minha sorte, deu-me a tão almejada liberdade). Digo pois que no fim, continuei vivo. Atenciosamente, Rodion Românnovitch Raskólnikov.”

É isso o que tenho para contar. Nada redimirá o ser humano, a não ser a sua consciência. O que espero para mim e para o Brasil, apenas, é que no final dos nossos livros, as nossas confissões nos redimam. Uma boa dica para 2022 é que os candidatos que se vendem como de bem, apenas confessem seus pecados publicamente. Os mais sinceros, ganhariam a liberdade e o prêmio da representação. (Bem que) 2022 poderia começar com um coletivo pedido de desculpas e confissões.

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