O STF está errado no inquérito das fake news?

Maurício Rands
Advogado formado pela FDR da UFPE, PhD pela Universidade Oxford
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Publicado em: 29/06/2020 03:00 Atualizado em: 29/06/2020 06:36

A atual é a composição mais fraca que já teve o nosso STF. Intelectual, ética e institucionalmente. Depois de acertar em algumas decisões limitando um presidente que tem dificuldade em governar com os freios e contrapesos dos demais poderes, seus membros imaginaram-se paladinos da nossa democracia. Embalados pelo JN, sentiram-se autorizados a tudo. Inclusive a não sofrer as críticas ácidas da opinião pública na linguagem pobre e emocional da internet.

E aí criaram o inquérito das “fake news”. Enxergaram “ameaças ao estado de direito” nas críticas sofridas. Na sessão de 18/06, julgando a ADPF nº 572, ratificaram o inquérito nº 4.781 ao declarar constitucional a Portaria do ministro Toffoli (GP nº 69) que o instaurara de ofício. E ratificaram a designação sem sorteio do relator Alexandre de Moraes. Com um único voto divergente, o do ministro Marco Aurélio. A resgatar o adágio popular de que toda unanimidade é burra. Voto que se baseia em fortes argumentos: i) o Ministério Público Federal, através da PGR, é que é o titular da ação penal por força dos arts. 129 da CF e 40 do CPP; preceitos respeitados pela então PGR Raquel Dodge, quando requisitou a instauração de inquérito policial federal em razão de ofensas à honra da ministra Rosa Weber, do STF (Ofício nº 958/2018/GAB/PGR); ii) a vítima não pode ser ao mesmo tempo investigadora, acusadora e julgadora, em decorrência do sistema penal acusatório, que separa as funções de acusar e julgar; iii) a exceção do artigo 43 do Regimento Interno do STF, invocado pela Portaria nº 69, aplica-se apenas aos atos que ameacem a instituição praticados no seu recinto; e nem se diga que, no ambiente digital, o recinto é todo o território nacional; quisesse estender sua aplicação, o próprio STF já teria reformado a regra regimental; e, iv) a designação de relator sem sorteio viola o art. 66 do RISTF; para o ministro, “cumpre observar o sistema democrático da distribuição, sob pena de começarmos a ter um juízo de exceção”.

Apesar de violar as normas constitucionais, legais e regimentais, a última palavra foi dada. Pois é certo que o conteúdo do texto constitucional é o que diz a corte suprema. Porque a Constituição assim o determina. Mas isso não a exime das críticas. A jurisdição do STF não pode dizer tudo o que seus membros queiram. Há limites, como ensina o professor João Maurício Adeodato (A retórica Constitucional e os Problemas dos Limites Interpretativos e Éticos do Ativismo Jurisdicional no Brasil). O primeiro, o próprio texto interpretado; o segundo, a doutrina estendida, nela compreendida “a doutrina técnica dos juristas, mas também de todos os núcleos organizados da sociedade, que porventura tenham interesse naquela decisão específica”.

Esse inquérito pode estar criando um instrumento de censura. Contraria a própria jurisprudência do STF. Como a expressa na ADPF 130: “a Lei Fundamental do Brasil veicula o mais democrático e civilizado regime da livre e plena circulação das ideias e opiniões, assim como das notícias e informações, mas sem deixar de prescrever o direito de resposta e todo um regime de responsabilidades civis, penais e administrativas. Direito de resposta e responsabilidades que, mesmo atuando a posteriori, infletem sobre as causas para inibir abusos no desfrute da plenitude de liberdade de imprensa” (ADPF 130, Rel. Min. Ayres Britto, Plenário, DJE de 6-11-2009).

Mesmo no auge das manifestações pregando um golpe, sempre achei que as milícias digitais eram minúsculas e que as Forças Armadas não embarcariam em aventuras. Muitos justificam excessos do STF como necessários para preservar a democracia. Os inquéritos seriam suas armas. A do Congresso, o impeachment. Outros, como Caio Machado, da Universidade de Oxford, já alertam para os riscos de abusos nessa concentração de poderes no STF. Penso que os inquéritos e ações realmente são instrumentos para frear abusos do Executivo. Mas desde que respeitem as regras. Têm que apurar atos ilegais já perpetrados.

O controle a priori é abuso. Usar o inquérito para ordenar batidas às casas e escritórios de blogueiros por expressarem opiniões contrárias aos ministros e aos poderes constituídos é punir o ‘delito’ de opinião. O que vem sendo proibido pelas constituições republicanas desde o fim das monarquias absolutistas. Por isso, a decisão do dia 18/06 não aplicou a melhor técnica de proteção à liberdade.

Estou entre os 70% dos brasileiros que discordam do conteúdo desses blogs de extrema-direita. Mas, entre eles, talvez eu seja minoria por não concordar com a decisão do STF que visa punir delitos de opinião. E que ameaça a livre expressão da crítica aos seus membros. Mormente aos de um STF que desrespeita normas constitucionais como as dos arts. 5º, IV, 129, I, e 220 da CF. E as do seu regimento (arts 43 e 66). Justamente as que protegem a liberdade de expressão e a imparcialidade do procedimento judicial. Curioso é que todos proclamam apreço pela liberdade. Ao menos pela própria. Mas quando se trata da liberdade dos outros, há quem prefira mandar às favas os escrúpulos.

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