Gilberto Freyre, um dos escritores mais criativos do país (parte 2)
Cibele Barbosa
Historiadora e pesquisadora da Fundaj
Publicado em: 20/03/2025 03:00 Atualizado em: 20/03/2025 05:16
Nos séculos anteriores (séculos 18 e 19) e até meados do 20, as pessoas enchiam a boca para dizer que os brancos tinham genérica superior, eram mais “civilizados” e outras asneiras. Esses e outros ditos racistas eram em parte aceitos nas instituições políticas e acadêmicas e por isso rotulamos esse tempo como o período do “racismo científico”. Muitos escritores e intelectuais defendiam essas ideias supremacistas e deterministas que foram postas abaixo em meados do século 20. O sociólogo Oliveira Viana, ao escrever sobre as “populações meridionais” afirmava que os negros tinham tendência a várias doenças, infertilidade etc.
Tudo isso seria suspostamente causado por uma falibilidade genética. Longe dele dizer que a causa das doenças e mazelas que afligiam a população pobre e afrodescendente das cidades e do campo eram as condições sociais a que estavam submetidos. O lócus do progresso, ali no início do século 20, diziam, era o Sul e Sudeste, em especial São Paulo, que estava recebendo milhares de imigrantes europeus. Para intelectuais como Viana, a mistura com imigrantes até seria boa porque “branquearia a população”. Esse tipo de tese colocava o Nordeste (o grande Norte) como lugar do atraso: uma população mestiça majoritariamente com ascendência negra e indígena, de clima tropical. Freyre, que havia chegado dos EUA há pouco tempo e estudado com o antropólogo Franz Boas, opunha-se a Viana e tinha uma outra visão da mestiçagem: ela não seria nosso fator de degeneração e muito menos seria o meio de nos branquear. Pelo contrário, ela ofertaria o melhor de diferentes povos, ou seja, herdaríamos as qualidades das “três raças”. Freyre afirmava que isso nos tornaria um povo exemplar porque tínhamos as contribuições de diferentes culturas impressas na nossa formação. De cara, Freyre estava rebatendo a ideia de que havia raças superiores e de que as qualidades dos indivíduos estariam ligadas à sua biologia. Na introdução de Casa-grande& senzala afirma: “Aprendi a considerar fundamental a diferença entre raça e cultura, a discriminar entre os efeitos de herança puramente genética e os de influências sociais.”
O jovem autor pernambucano não foi o primeiro a dizer isso, mas dizer isso naquela época, no Brasil, era algo disruptivo, progressista mesmo. As pessoas não eram determinadas em seus feitos, conquistas e comportamentos pela biologia, mas pelas condições sociais e culturais a que estavam submetidas. Os problemas enfrentados pelas populações mestiças, afrodescendentes e indígenas, não era devido à sua raça, mas aos descasos que sofriam, principalmente em razão da herança escravocrata. Quando organizou o Primeiro Congresso afro-brasileiro em 1934, Freyre estava enviando uma “indireta” para seus colegas brancos que olhavam de modo enviesado para religiões de matriz africana ou achavam que a música e a cultura africana eram inferiores.
Para esses outros, bom mesmo era o que vinha da Europa: era essa a tônica que permeou o período da chamada Belle Époque. Como Freyre bem mostrou na obra Sobrados e Mucambos, a arquitetura, a alimentação, tudo que vinha de fora, dos franceses e ingleses em especial, era abraçado, valorizado e copiado no Brasil por suas elites, mesmo que não fossem viáveis para nosso clima e nossos hábitos. Era sobre o preconceito à cultura de matriz africana que Freyre se referia. Quando falou sobre o I Congresso afro-brasileiro que estava organizando, afirmou que aquele evento seria uma forma de combater o preconceito. No evento houve participação de pais e mães de santo em um tempo que as religiões de matriz africana estavam sofrendo ameaças e perseguições.
Nesse sentido, Freyre focou na valorização das populações negras pela via da cultura sem adentrar, porém, nos pontos nevrálgicos da discussão sobre as desigualdades raciais brasileiras. Essa e outras questões foram a razão para a acirramento dos debates, no final dos anos 1940 e nos anos 1950 com autores como Abdias do Nascimento e, mais adiante, Florestan Fernandes e outros. Os debates sobre a crença de Freyre de que o Brasil era uma democracia racial é apenas um dos vários aspectos ligados à vida e principalmente obra do autor. Intelectual público, contraditório e polêmico em muitas de suas posições, inclusive em adesões políticas, pautou debates e frentes de estudo, abriu temas e abordagens, alguns já refutados outros ainda bem atuais.
Freyre discutiu meio-ambiente, sexualidade, alimentação, arquitetura, biografias, infância etc. Mas sem dúvida, a questão da democracia racial foi um tema tão popularizado, criticado e debatido (e não sem razão) que, por outro lado, muito se esquece do tanto que ele produziu e contribuiu para a cena intelectual brasileira em vários outros campos: da história cultural à antropologia do corpo. Além do grande leque de variedade nos seus trabalhos, consultar as obras de Freyre é poder ler um dos escritores mais criativos do país. Só pela qualidade literária dos muitos dos seus textos já vale a leitura. Quer se goste ou não de suas obras ou se concorde ou não com suas ideias, conhecer a trajetória de Freyre e ler os seus escritos são elementos importantes para entender o Brasil e suas contradições.
Tudo isso seria suspostamente causado por uma falibilidade genética. Longe dele dizer que a causa das doenças e mazelas que afligiam a população pobre e afrodescendente das cidades e do campo eram as condições sociais a que estavam submetidos. O lócus do progresso, ali no início do século 20, diziam, era o Sul e Sudeste, em especial São Paulo, que estava recebendo milhares de imigrantes europeus. Para intelectuais como Viana, a mistura com imigrantes até seria boa porque “branquearia a população”. Esse tipo de tese colocava o Nordeste (o grande Norte) como lugar do atraso: uma população mestiça majoritariamente com ascendência negra e indígena, de clima tropical. Freyre, que havia chegado dos EUA há pouco tempo e estudado com o antropólogo Franz Boas, opunha-se a Viana e tinha uma outra visão da mestiçagem: ela não seria nosso fator de degeneração e muito menos seria o meio de nos branquear. Pelo contrário, ela ofertaria o melhor de diferentes povos, ou seja, herdaríamos as qualidades das “três raças”. Freyre afirmava que isso nos tornaria um povo exemplar porque tínhamos as contribuições de diferentes culturas impressas na nossa formação. De cara, Freyre estava rebatendo a ideia de que havia raças superiores e de que as qualidades dos indivíduos estariam ligadas à sua biologia. Na introdução de Casa-grande& senzala afirma: “Aprendi a considerar fundamental a diferença entre raça e cultura, a discriminar entre os efeitos de herança puramente genética e os de influências sociais.”
O jovem autor pernambucano não foi o primeiro a dizer isso, mas dizer isso naquela época, no Brasil, era algo disruptivo, progressista mesmo. As pessoas não eram determinadas em seus feitos, conquistas e comportamentos pela biologia, mas pelas condições sociais e culturais a que estavam submetidas. Os problemas enfrentados pelas populações mestiças, afrodescendentes e indígenas, não era devido à sua raça, mas aos descasos que sofriam, principalmente em razão da herança escravocrata. Quando organizou o Primeiro Congresso afro-brasileiro em 1934, Freyre estava enviando uma “indireta” para seus colegas brancos que olhavam de modo enviesado para religiões de matriz africana ou achavam que a música e a cultura africana eram inferiores.
Para esses outros, bom mesmo era o que vinha da Europa: era essa a tônica que permeou o período da chamada Belle Époque. Como Freyre bem mostrou na obra Sobrados e Mucambos, a arquitetura, a alimentação, tudo que vinha de fora, dos franceses e ingleses em especial, era abraçado, valorizado e copiado no Brasil por suas elites, mesmo que não fossem viáveis para nosso clima e nossos hábitos. Era sobre o preconceito à cultura de matriz africana que Freyre se referia. Quando falou sobre o I Congresso afro-brasileiro que estava organizando, afirmou que aquele evento seria uma forma de combater o preconceito. No evento houve participação de pais e mães de santo em um tempo que as religiões de matriz africana estavam sofrendo ameaças e perseguições.
Nesse sentido, Freyre focou na valorização das populações negras pela via da cultura sem adentrar, porém, nos pontos nevrálgicos da discussão sobre as desigualdades raciais brasileiras. Essa e outras questões foram a razão para a acirramento dos debates, no final dos anos 1940 e nos anos 1950 com autores como Abdias do Nascimento e, mais adiante, Florestan Fernandes e outros. Os debates sobre a crença de Freyre de que o Brasil era uma democracia racial é apenas um dos vários aspectos ligados à vida e principalmente obra do autor. Intelectual público, contraditório e polêmico em muitas de suas posições, inclusive em adesões políticas, pautou debates e frentes de estudo, abriu temas e abordagens, alguns já refutados outros ainda bem atuais.
Freyre discutiu meio-ambiente, sexualidade, alimentação, arquitetura, biografias, infância etc. Mas sem dúvida, a questão da democracia racial foi um tema tão popularizado, criticado e debatido (e não sem razão) que, por outro lado, muito se esquece do tanto que ele produziu e contribuiu para a cena intelectual brasileira em vários outros campos: da história cultural à antropologia do corpo. Além do grande leque de variedade nos seus trabalhos, consultar as obras de Freyre é poder ler um dos escritores mais criativos do país. Só pela qualidade literária dos muitos dos seus textos já vale a leitura. Quer se goste ou não de suas obras ou se concorde ou não com suas ideias, conhecer a trajetória de Freyre e ler os seus escritos são elementos importantes para entender o Brasil e suas contradições.
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