Do rural ao urbano: o caso do Poço da Panela e seus bairros vizinhos
Zeca Brandão, Arquiteto e urbanista, PhD pela Architectural Association School of London e professor titular da UFPE
e Vitor Araripe, Arquiteto e urbanista (UFPE) e chefe de gabinete da Secretaria
Nacional de Periferias do Ministério das Cidades
Publicado em: 13/03/2025 03:00 Atualizado em: 13/03/2025 17:26
No começo deste ano, a “Venda de Seu Vital” foi declarada Patrimônio Cultural Imaterial do Recife. Localizado no Poço da Panela, o estabelecimento funciona desde os anos 1950 e hoje é considerado a principal centralidade sociocultural do bairro. Lá, intelectuais, políticos e artistas se encontram para discutir desde pequenos projetos pessoais até grandes questões referentes ao destino da cidade. O espaço tornou-se um legítimo representante da identidade local e símbolo de resistência à especulação imobiliária que avança a passos largos na região.
O Poço da Panela e sua vizinhança, composta pelos bairros de Casa Forte, Monteiro e Apipucos, é hoje uma das áreas de maior valorização imobiliária da capital pernambucana. Entretanto, se até parte do séc. 20 a área contava com infraestrutura e ambiência urbana considerável, essa condição foi perdendo qualidade ao longo do processo de ocupação mais intenso e verticalizado. A multiplicação do número de moradores sobrecarregou a infraestrutura urbana da área, comprometendo o sistema viário e os serviços de água, lixo e esgotamento sanitário. A presença dos edifícios altos não só modificou drasticamente a paisagem urbana da região, como também repercutiu negativamente na qualidade de vida e nas práticas sociais da população.
Compreender como se deu a transformação dessa região originariamente rural numa área urbana nos ajuda não só a entender como chegamos até aqui, mas sobretudo como devemos agir daqui para a frente. Através do contexto histórico da área, é fundamental identificar quais são os principais elementos resultantes desse processo de formação e entender como eles incidem e condicionam as permanências e transformações observadas nos dias de hoje.
Durante os três primeiros séculos de ocupação, as margens do Capibaribe, em especial a margem esquerda, foram ocupadas por engenhos de açúcar. A partir do declínio dessa atividade e da instalação de usinas e outras tecnologias de produção mais distantes, esses engenhos passaram a se subdividir em propriedades menores, como sítios e chácaras. Além dessa nova configuração territorial, ao longo do tempo foram surgindo os núcleos mais densamente povoados, principalmente no entorno das antigas estruturas dos engenhos. Aos poucos esses arrabaldes foram se transformando em pequenos vilarejos que, por sua vez, se transformaram em bairros.
A partir da década de 1990, esse processo de desmembramento, protagonizado até então pelos próprios proprietários, é substituído por um consistente movimento de remembramento, conduzido pelo mercado imobiliário e induzido por novas legislações urbanísticas fundamentadas no potencial construtivo dos terrenos. Essa nova lógica fundiária da região sustentou a grande verticalização que é possível constatar atualmente, incentivada por sucessivas legislações que, na época, passaram a estabelecer critérios de ocupação mais flexíveis que os anteriores. Esse aumento do potencial construtivo sem as devidas restrições, levou a cabo um processo de adensamento bastante acelerado, alterando radicalmente algumas partes desses bairros.
Porém, é importante destacar que, mesmo com o avanço da urbanização, porções consideráveis do território conseguiram manter o seu padrão de ocupação tradicional, além de um conjunto de especificidades do modo de vida local e da sua qualidade urbana. Enquanto algumas dinâmicas impuseram grandes transformações a partes desse território, percebe-se a permanência de alguns dos elementos originais do processo histórico de formação da área até os dias de hoje. Portanto, mesmo tendo sido alvo de um forte movimento de valorização imobiliária e flexibilização urbanística, que possibilitou um adensamento construtivo e populacional exagerado em certos lotes e quadras, outros dispositivos legais conseguiram antagonizar-se a esse processo e estabelecer um contraponto.
O próprio histórico da legislação urbanística para a área traduz essa dinâmica entre momentos de flexibilização e avanço do setor imobiliário, e momentos de normas mais rigorosas, preocupadas com a qualidade do meio ambiente e com a preservação do patrimônio histórico e cultural da área. Essa região talvez seja o maior campo de batalha entre as forças hegemônicas do mercado imobiliário e os movimentos de resistência a essa lógica de produção da cidade do Recife.
O peso dos fatores ambientais, socioeconômicos e histórico-culturais, encontrado na leitura desse território devem condicionar, como em qualquer outro território, o conjunto de legislações, planos e projetos específicos que busquem se debruçar sobre cada um desses aspectos. No caso particular dessa região, o processo de transformação do ambiente rural em ambiente urbano, caracterizando-se como uma espécie de tecido híbrido, requer uma atenção especial. Nesse sentido, a análise das transformações e principalmente das permanências ocorridas ao longo do processo de ocupação da área, como a “Venda do Seu Vital” e seu entorno, pode ajudar a estabelecer os principais condicionantes a serem considerados em futuras intervenções.
O Poço da Panela e sua vizinhança, composta pelos bairros de Casa Forte, Monteiro e Apipucos, é hoje uma das áreas de maior valorização imobiliária da capital pernambucana. Entretanto, se até parte do séc. 20 a área contava com infraestrutura e ambiência urbana considerável, essa condição foi perdendo qualidade ao longo do processo de ocupação mais intenso e verticalizado. A multiplicação do número de moradores sobrecarregou a infraestrutura urbana da área, comprometendo o sistema viário e os serviços de água, lixo e esgotamento sanitário. A presença dos edifícios altos não só modificou drasticamente a paisagem urbana da região, como também repercutiu negativamente na qualidade de vida e nas práticas sociais da população.
Compreender como se deu a transformação dessa região originariamente rural numa área urbana nos ajuda não só a entender como chegamos até aqui, mas sobretudo como devemos agir daqui para a frente. Através do contexto histórico da área, é fundamental identificar quais são os principais elementos resultantes desse processo de formação e entender como eles incidem e condicionam as permanências e transformações observadas nos dias de hoje.
Durante os três primeiros séculos de ocupação, as margens do Capibaribe, em especial a margem esquerda, foram ocupadas por engenhos de açúcar. A partir do declínio dessa atividade e da instalação de usinas e outras tecnologias de produção mais distantes, esses engenhos passaram a se subdividir em propriedades menores, como sítios e chácaras. Além dessa nova configuração territorial, ao longo do tempo foram surgindo os núcleos mais densamente povoados, principalmente no entorno das antigas estruturas dos engenhos. Aos poucos esses arrabaldes foram se transformando em pequenos vilarejos que, por sua vez, se transformaram em bairros.
A partir da década de 1990, esse processo de desmembramento, protagonizado até então pelos próprios proprietários, é substituído por um consistente movimento de remembramento, conduzido pelo mercado imobiliário e induzido por novas legislações urbanísticas fundamentadas no potencial construtivo dos terrenos. Essa nova lógica fundiária da região sustentou a grande verticalização que é possível constatar atualmente, incentivada por sucessivas legislações que, na época, passaram a estabelecer critérios de ocupação mais flexíveis que os anteriores. Esse aumento do potencial construtivo sem as devidas restrições, levou a cabo um processo de adensamento bastante acelerado, alterando radicalmente algumas partes desses bairros.
Porém, é importante destacar que, mesmo com o avanço da urbanização, porções consideráveis do território conseguiram manter o seu padrão de ocupação tradicional, além de um conjunto de especificidades do modo de vida local e da sua qualidade urbana. Enquanto algumas dinâmicas impuseram grandes transformações a partes desse território, percebe-se a permanência de alguns dos elementos originais do processo histórico de formação da área até os dias de hoje. Portanto, mesmo tendo sido alvo de um forte movimento de valorização imobiliária e flexibilização urbanística, que possibilitou um adensamento construtivo e populacional exagerado em certos lotes e quadras, outros dispositivos legais conseguiram antagonizar-se a esse processo e estabelecer um contraponto.
O próprio histórico da legislação urbanística para a área traduz essa dinâmica entre momentos de flexibilização e avanço do setor imobiliário, e momentos de normas mais rigorosas, preocupadas com a qualidade do meio ambiente e com a preservação do patrimônio histórico e cultural da área. Essa região talvez seja o maior campo de batalha entre as forças hegemônicas do mercado imobiliário e os movimentos de resistência a essa lógica de produção da cidade do Recife.
O peso dos fatores ambientais, socioeconômicos e histórico-culturais, encontrado na leitura desse território devem condicionar, como em qualquer outro território, o conjunto de legislações, planos e projetos específicos que busquem se debruçar sobre cada um desses aspectos. No caso particular dessa região, o processo de transformação do ambiente rural em ambiente urbano, caracterizando-se como uma espécie de tecido híbrido, requer uma atenção especial. Nesse sentido, a análise das transformações e principalmente das permanências ocorridas ao longo do processo de ocupação da área, como a “Venda do Seu Vital” e seu entorno, pode ajudar a estabelecer os principais condicionantes a serem considerados em futuras intervenções.
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