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A casa de Manuel Bandeira na Rua do Curvelo (RJ)

Marcus Prado
Jornalista

Publicado em: 02/01/2023 06:50 Atualizado em: 02/01/2023 07:04

Vem do governo alemão um exemplo raro de tributo à memória de um grande escritor. O presidente da Alemanha, Frank-Walter Steinmeier, (1956-) determinou a compra, para fins culturais, das casas onde o Nobel Thomas Mann havia morado, na Europa e nos EUA, e assim o fez e cumpriu a intenção. TM é autor de obras que hoje fazem parte do cânone da literatura universal, como os romances A Montanha Mágica e Os Buddenbrook e as novelas Morte em Veneza e Tonio Kröger. Até o casarão da mãe do escritor, a brasileira Júlia Mann (1851-1923), em Paraty (Rio de Janeiro), fazia parte cimeira do projeto, mas a transação, infelizmente, não foi aceita por seu atual proprietário, o navegador Amyr Klink. (ele estava fora do Brasil quando estive em Paraty para uma entrevista sobre o assunto, havia deixado o irmão, que me recebeu num café da manhã, enfatizando a intenção do Amyr não se desfazer da casa).

Escrevo para dizer e muito a lamentar que a casa da Rua do Curvelo, 53, bairro de Santa Teresa, do poeta pernambucano Manuel Bandeira, onde ele viveu os anos mais difíceis e paradoxalmente criativos da sua vida, foi demolida. Ali, ele viveu modestamente durante quase 15 anos, pobre, doente, só, sem emprego, por conta de um montepio deixado por seu pai, algo como um salário mínimo na época. 

No artigo O diário de Gilberto Freyre, Antônio Carlos Villaça conta que Gilberto Freyre, quando em viagem ao Rio, em 1926, “foi visitar Manuel Bandeira na Rua do Curvelo, 51”, (...) “lindo lugar, mas casa de pobre”. Apenas uma janela servia como mediação entre o espaço interno e o espaço externo da rua. A vida como um rio que passava e poderia ser vista da janela, a engrenagem nômade do cotidiano. Uma certa paisagem construída de forma subjetiva por ele, realizada por meio de um sentimento que só a poesia sabe dizer. Era com o sotaque das suas origens que inventava o seu miradouro. Tenho para mim que nenhum poeta do nosso idioma como esse pernambucano teria visto de uma simples janela as coisas, os seres, o panorama da existência, as alegrias e as dores, a poética do cotidiano e as coisas efêmeras, o mundo, a paisagem construída pela memória, que convém aos momentos raros da vida. Como O Quarto e o Corpo, de Lygia Klark (1920-1988), para a Bienal de Veneza.

Arthur Miller (1915-2005) teve a sua “ponte” para ver o mundo. Para Manuel Bandeira bastava uma janela, sobre a qual, recentemente, uma máquina de demolição por implosão reduziu a cinzas. Tudo durou um instante, “rugiu como um furacão”, como no seu poema de tom fúnebre A Cinza das Horas (1917).

Foi nessa casa onde ele, sob impacto de nostalgia do passado do seu tempo recifense, já tuberculoso, teve a ideia de fugir de tudo o que lhe atormentava e escreveria um dos seus mais belos poemas de exaltação a essa cidade: “Vou-me embora pra Pasárgada/Lá sou amigo do rei/ Lá tenho a mulher que eu quero/ Na cama que escolherei/ Vou-me embora pra Pasárgada”.  Ele sempre confessava gostar desse poema, porque via nele “em escorço” toda a sua vida.  Porque lhe parecia que nele soubera “transmitir a tantas outras pessoas a visão e promessa” da sua adolescência no Recife. Um poema como o de Carlos Drummond de Andrade (l902-1987), Os Ombros Suportam o Mundo, (Sentimento do Mundo) síntese de sua vida e do seu tempo.  Só por esse poema, não bastasse o vulto humano de Manuel Bandeira, essa casa deveria ser tombada, que jamais permitissem a sua demolição.

Faço daqui um apelo ao prefeito da cidade do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, (que já tem um interessante projeto de restauro de imóveis antigos) para que, em parceria com a Academia Brasileira de Letras, da qual Bandeira foi integrante, mande colocar no que restou da velha casa de Manuel Bandeira uma placa alusiva ao mais importante morador da rua, que foi um dos mais amorosamente cariocas dos poetas do seu tempo.  Um dos poetas mais marcantes de sua geração brasileira, se considerarmos quem eram seus contemporâneos

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