Diario de Pernambuco
Busca
Fuks ocupa seu lugar na ficção

Raimundo Carrero
Jornalista e membro da Academia Pernambucana de Letras

Publicado em: 06/01/2020 03:00 Atualizado em: 06/01/2020 09:19

Em geral não gosto nem recomendo o uso do pronome “seu”.  É ambíguo demais. Assim, “seu” meu, “seu” dele ou “seu” do leitor? Aprendi nos meus tempos de repórter e editor de assuntos policiais deste jornal que este dito pronome precisa de uma explicação para evitar dúvidas nos inquéritos. Assim: o acusado confessa que atirou no seu coração para evitar o ataque . Como? Seu? Foi suicídio? Confessa que atirou no seu (da vítima) coração pra evitar o ataque. Poderia ficar assim: O acusado confessa que atirou no coração dele ou dela, mas aí  os estilistas mandam matar. Mandavam, quando havia galos , cânticos e quintais. Agora pode tudo. Um certo tipo de crítica acha que vale tudo, basta escrever. Se baixou seu, fica seu. Não adianta gemer, tugir ou mugir. Vale o que baixou. O resto é besteira.

Agora mesmo percebo que coloquei aspas demais. Mas foi o que baixou. Deixo ou não deixo? Afinal, deve ficar apenas o que baixou. Entro definitivamente no meu tema: o romance “Ocupação”, de Julian Fuks, este revolucionário que de volta o romance político com um texto brilhante, de quem conhece criação literária, sem abrir mão do tema, da questão social a partir do conhecimento do personagem, não apenas como um personagem, um ser de papel, mas de um ser humano carregado de dores, angústias, alegria. E luta, muita luta.

A imensa qualidade do texto de Julian Fuks começa nas primeiras frases do romance com o narrador , áspero ,belo e forte, questionando o ser humano, através do personagem e do tempo verbal. Vejam bem: do tempo verbal transitando entre o personagem e o narrador. Não é um texto que baixa. É um texto trabalhado, vai além da mera inspiração. Responde por aquilo que chamo de Pulsação Narrativa na minha prática de criação literária...

Agora vamos ver como tudo isso se realiza frase a frase: “ Todo homem é ruína de um homem, eu poderia ter pensado. Aquele homem que se apresentava aos meus olhos era a encarnação dessa máxima, um ser em estado precário, um corpo soterrado em seus próprios escombros. Essa impressão não viria do pescoço fino, do torso esquálido, das pernas retorcidas sobre a cadeira de rodas, mas de um aspecto menor, circunstancial: um homem era naquele instante uma ruína de homem porque estava completamente bêbado.

O homem interpôs à nossa passagem aquele entulho de cadeira de rodas e pediu, com gentileza inesperada, que o empurrássemos até o fim da rua.

Não pensei se  homem era a ruína do homem quando cheguei para ver meu pai. Não pensei em nada.

O verbo agora no pretérito passado explica e justifica o futuro do pretérito. O narrador não pensou, mas podia ter pensado, está convencido agora, é o que diz. Ou, pelo menos, era o que devia ter pensado.

MAIS NOTÍCIAS DO CANAL