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A manipulação das emoções

Maurício Rands
Advogado formado pela FDR da UFPE, PhD pela Universidade Oxford

Publicado em: 23/12/2019 03:00 Atualizado em: 23/12/2019 08:35

Graças a gente como Decartes, Bacon e Hobbes, vivemos por 350 anos sob um paradigma técnico-científico. Desde a Revolução Científica do Século XVII. Um paradigma em que a explicação da realidade deveria ser feita racionalmente. O argumento baseado nos fatos, na evidência empírica, na expertise técnica. A razão humana, numa perspectiva de exterioridade, a explicar como funciona a sociedade e a natureza. Para isso, foram criados os métodos de investigação científica. Teorias submetidas, de forma transparente, ao escrutínio crítico de outros especialistas (peer review) e do público em geral. A construção do conhecimento era um processo lento e reflexivo. Tudo submetido à evidência, à observação, ao ‘fact-checking’. Instituições específicas foram criadas como centros de produção do conhecimento técnico-científico. Públicos e privados. Universidades, ‘think-tanks’, unidades técnicas governamentais e empresas. A comunicação ao grande público feita pela mídia sob o pressuposto de imparcialidade e objetividade. Dos governos esperavam-se soluções guiadas pelo conhecimento e pela técnica, no interesse do desenvolvimento.

Desdobramentos recentes colocaram em xeque esse paradigma. Os depositários do modelo da objetividade revelaram-se não tão objetivos. Não tão imparciais. Percebeu-se que muitas vezes usavam em seu próprio benefício a credibilidade da pretensão técnico-científica das soluções por eles apresentadas. Viu-se que perseguiam a própria agenda de interesses. À medida que os problemas e as soluções foram se tornando mais complexos, aumentou a distância entre os experts e os leigos. Surgiu um fosso entre a tecnocracia dos governantes e o grande público. Fosso que se revelou crescentemente material. Não apenas de poder. Aumentou a desigualdade. E com ela o sentimento de injustiça e desapontamento dos que ficaram para trás. Daí o ressentimento contra as elites políticas e tecnocráticas percebidas como movidas pelo interesse próprio. O que é agravado quando o público fica sabendo do nível de corrupção dessas elites. Esse humor ressentido já começara a se expressar antes da revolução tecnológica da internet. Mas, depois do advento de plataformas como Google, Facebook e Youtube, ganha proporções gigantescas. Muda o paradigma. Antes o conhecimento e a informação eram concentrados nas instituições técnico-científicas-governamentais. Uns ‘poucos’ especialistas produziam os conteúdos. Que eram comunicados ao grande público. O novo paradigma é o inverso. Todos se tornaram produtores de conteúdos em plataformas como Google e Facebook. Ocorre que a informação partilhada por bilhões de pessoas é apropriada por algumas poucas corporações que controlam essas plataformas. Cujo modelo de negócio é a ‘surveillance’. Todos compartilhamos com essas plataformas as nossas raivas, desejos, dores e demais emoções quando realizamos qualquer postagem ou clicagem. Elas passam a monopolizar os dados que nelas postamos. E esses dados são por elas administrados sem qualquer transparência. E, depois, utilizados em publicidades e propagandas dirigidas. Elas passam a ter, portanto, um rentabilíssimo monopólio sobre um conhecimento que é produzido por todos ininterruptamente. Não importa se esse conhecimento é produzido por métodos de objetividade científica. Eles não se voltam para explicar a natureza ou o funcionamento da sociedade. Mas, sim, para serem utilizados para objetivos práticos. Econômicos, mas também políticos. As plataformas digitais passam a ser utilizadas como poderosas ferramentas de controle político. E de modo mais efetivo pelos políticos populistas e nacionalistas que recolhem o ressentimento de amplos setores que vêm nas elites a causa de seus males. A instrumentalização desse ressentimento é amplificada pela velocidade da internet. E pela desnecessidade de sujeição aos lentos procedimentos do paradigma técnico-científico anterior. Vale mais a velocidade da comunicação. A simplicidade das ‘soluções’ oferecidas. Tudo isso potencializado pela resposta simplificada aos medos, raivas e dores de eleitores desencantados. Mesmo que essas respostas não sejam baseadas na realidade ou nos procedimentos técnicos do paradigma anterior. Por isso, não importa que as soluções sejam baseadas em ‘fake news’ ou ‘fatos alternativos’. Ou que sejam efetivas e viáveis. Elas destinam-se a um objetivo específico e imediato: a mobilização do ressentimento.

Esse paradigma começa a ser questionado. Já se imaginam caminhos para sua superação. É o que fazem pensadores como William Davies, da Universidade de Londres, (‘Nervous states - how feeling took over the world’, 2018). Como vamos analisar no próximo artigo aqui no Diario de Pernambuco.

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