CINEMA
Suspense pernambucano 'Propriedade' é intenso mergulho na falta de conciliação
Filme dirigido por Daniel Bandeira passou pelo Festival de Berlim e finalmente ganhou as salas de cinema de Recife
Por: André Guerra
Publicado em: 15/12/2023 09:00
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Vitrine Filmes/Divulgação |
Após um acontecimento traumático envolvendo uma tentativa de assalto, um casal (Malu Galli e Tavinho Teixeira) vai passar um tempo na fazenda. O marido, para tranquilizar a esposa, investe em um carro automatizado e blindado para fazer essa viagem. Chegando lá, porém, descobrem que os trabalhadores do local já estão cientes do plano da venda das terras e, por conseguinte, do desalento que os aguarda. O conflito se agrava e, rapidamente, o casal se vê em meio a uma revolta violenta que deixa o marido ferido enquanto a esposa se tranca no carro para escapar. As inúmeras tentativas de conciliação são sempre frustradas pelo acaso ou pelo desejo sanguinário de algum dos personagens e a situação se torna cada vez mais brutal.
Claustrofóbico desde os primeiros segundos e sempre brutal, o pernambucano Propriedade, que já está em cartaz no Recife com sessões especiais, é um belíssimo filme de gênero que não tem medo de lidar de maneira frontal com a violência e tampouco assume um dos lados dela. Daniel Bandeira, cineasta recifense também responsável por Amigos de risco. preserva esse realismo que inicialmente remete a um drama político mas desde cedo abraça a forma de um thriller mais tradicional - no melhor sentido da palavra. E como exercício de tensão, focado em uma situação, é eficiente em tudo o que se propõe.
O filme estabelece o mal-estar social/psicológico da protagonista na primeira cena como um motivador dramático que pode soar genérico, mas é interessante como aquilo jamais se torna parte da trama de modo didático ou previsível. É apenas um dado adicional para compor esse quadro de desespero e o fato de a violência se manifestar de modo gráfico logo nas primeiras cenas torna tudo mais apavorante pra ela.
A sacada de fazer um flashback logo no primeiro ato também pode passar a impressão de truque pra gerar tensão, mas, na prática, faz total sentido mostrar o começo dos dois lados da ação para, uma vez que o conflito está posto, simplesmente partir paro que interessa: o suspense e a ação. Não apenas a direção trabalha bem com o crescendo do pavor envolvendo o carro, e sabe aproveitar os tropos desse tipo de filme, como tem uma disposição muito grande para lidar com a a relação de classe que se instala ali. Existe um posicionamento político muito claro em relação à questão terra, da exploração, dos privilégios e da revolta, mas Propriedade jamais transforma esse discurso em um norte moral para a resolução da história. O principal aqui é o que está em cena.
Essa decisão de aceitar a "ambiguidade" certamente foi e será alvo de críticas severas, mas neste filme em específico ela se torna muito mais uma vantagem do que uma desvantagem. Não se trata de uma situação como a de Bacurau (ainda que algumas semelhanças sejam inegáveis), no qual o roteiro assumia o maniqueísmo de maneira franca e objetiva. No roteiro de Bandeira, o conceito de um "filme de coletivo" serve menos para explorar a unidade do grupo como força de uma revolta e mais para lidar com as diferenças dentro dele (afinal todos os desdobramentos, viradas e tragédias sempre acontecem por conta de alguma ação individual, algum destempero ou motivo irracional por parte de um dos trabalhadores ou mesmo da própria personagem de Malu).
Essa ambiguidade, que poderia desvalidar a luta de classes em questão (e transformar tudo em um simples: "tudo tem dois lados", ou "os dois estão errados"), é, na verdade, mais complexo e difícil (pra ele e pra plateia): compreender que qualquer resolução que se encontre para um impasse desse tipo vai cruzar a linha da razão de qualquer forma e nunca vai ser de fato um ponto final.
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