Diario de Pernambuco
Busca
Música Um dos artistas mais censurados da Ditadura, Odair José faz show no Recife neste domingo Produção da época do Regime Militar foi analisada em dissertação do historiador pernambucano Ivan Lima

Por: Breno Pessoa

Por: Estado de Minas

Publicado em: 23/04/2017 13:00 Atualizado em: 23/04/2017 13:37

Estima-se que pelo menos 40 letras de Odair foram vetadas pela Censura. Foto: Renato Ribeiro/Divulgação
Estima-se que pelo menos 40 letras de Odair foram vetadas pela Censura. Foto: Renato Ribeiro/Divulgação

Quando pensamos em artistas brasileiros que foram perseguidos pela ditadura, rapidamente surgem os nomes de Chico Buarque, Gonzaguinha, Taiguara e outros. Menos lembrados, músicos populares como Odair José acabaram sofrendo censura não por questões políticas, mas morais, que interferiram igualmente na produção musical dos anos 1970. Passado o período de repressão criativa, o cantor e compositor romântico enxerga retorno ao conservadorismo no país, tema presente no recém-lançado Gatos e ratos (Independente, 10 faixas, R$ 25), que será apresentado ao público recifense neste domingo, em show no Estelita (Avenida Saturnino de Brito, 385, Cabanga), às 18h.

Se, durante quase toda a carreira, Odair José teve a obra reduzida ao que se convencionou chamar de brega, rótulo que ele descarta, o músico tem enveredado cada vez mais pelo rock, como no mais recente trabalho. As incursões pelo gênero, no entanto, não são novidade, já que em 1977 lançou o álbum que é considerado a primeira ópera-rock nacional, O filho de José e Maria. Em Gatos e ratos, o artista outra vez retorna ao som mais cru e básico, guiado pela guitarra, baixo, bateria. Nas letras, ataques ao preconceito, às elites moralistas e, até mesmo, aos impostos pagos pela população e à violência no trânsito.

Esse viés de cronista e crítico é de longa, basta lembrar a famosa Para de tomar a pílula. O hit e outras faixas de Odair José levantavam temas polêmicos até hoje e atraíram também a atenção dos censores: estima-se que pelo menos 40 letras foram vetadas na versão original. A questão foi analisada pelo pesquisador Ivan Lima, na dissertação de mestrado em história da Universidade Federal da Paraíba Ame, assuma e consuma: Canções, censura e crônicas sociais no Brasil de Odair José (1972-1979)
Pesquisador dedicou três anos de pesquisa em dissertação sobre o músico. Foto: Acervo pessoal/divulgação
Pesquisador dedicou três anos de pesquisa em dissertação sobre o músico. Foto: Acervo pessoal/divulgação

"O que me chamou a atenção foi o número de reincidências. Ele foi muito censurado", explica Ivan, acrescentando considerar "a censura moral é pior que a censura política". Na maioria dos casos, a participação de advogados das gravadoras e modificações nas canções garantiam liberação posterior. Mas algumas sanções foram mais severas, diz Lima. "Vou tirar você desse lugar (1972), por exemplo, saiu só em compacto", diz ele, explicando que, embora tenha passado despercebida pelos censores inicialmente, a música não entrou no disco seguinte do autor, mesmo tendo um sido um grande sucesso na época. Algo parecido ocorreu com O filho de José e Maria, que acabou sendo recolhido pela gravadora e levando o músico a ser demitido. 

O pesquisador diz ter começado a estudar música brasileira desde a adolescência, quando também começou a ouvir artistas populares como Waldick Soriano e Wando. Foi nessa época que decidiu cursar história, justamente para aprofundar os estudos sobre o cancioneiro nacional. "Eu ouvi muita música brega, como Marcio Greyck e Fernando Mendes", relembra, até entrar em contato com os álbuns de Odair José.

"Ele traz temáticas muito diferentes", defende, em oposição a outros artistas populares que, por vezes, abordam temas pouco variados, como amores e trações e, não raro, com visões machistas. “Odair trazia uma temática periférica, inovadora”, defende Ivan. "Ninguém falava de homossexualismo, drogas ou de amor, de forma tão explícita", destaca. Outro aspecto que atraiu o olhar do pesquisador foi a musicalidade. "Odair fazia rock, soul music. E não ficava restrito aos três acordes,vinha também com solos de guitarra elaborados", pontua.

Ivan também afirma que a boa vendagem de nomes como Odair José possibilitava às gravadoras apostar em discos de músicos como Caetano Veloso, que embora consagrados, estavam longe de ter o mesmo desempenho de artistas populares, a exemplo de Núbia Lafayette.

"Através das letras de Odair José, estabelecemos uma análise do país, em um momento de repressão moral e política e de radicalização também no meio artístico", analisa Lima na dissertação. "Aspectos do cotidiano popular, das relações amorosas, polêmicas sociais, transgressões morais e censura foram características essenciais dessa obra", aponta o autor, que considera essencial uma maior atenção do meio acadêmico em relação ao trabalho desses artistas populares. "Por que escondem essa galera? Tem que ter nos livros de história", defende.


Censuradas

Em qualquer lugar
Nem sempre as mudanças no conteúdo ou negociações com a Divisão de Censura de Diversões Públicas garantiam aprovação de letras antes vetadas. Em qualquer lugar é exemplo: a letra foi analisada por 12 diferentes censores em quatro processos distintos e, em 15 de junho de 1973, o parecer definitivo do órgão proibiu a gravação. O problema foi o conteúdo "considerado imoral", sugerindo a prática sexual em qualquer lugar.

A primeira noite
A perseguição levou o músico a objetar várias das proibições impostas, a ponto do músico procurar, em 1974, o general Golbery Couto e Silva, chefe de gabinete civil de Geisel, para discutir a situação. Sem sucesso nas negociações, Odair mudou a letra de A primeira noite, vetada por ser considerada de moral duvidosa para os jovens. A faixa acabou modificada, inclusive no título, que virou Noite de desejo.

Amantes
O veto à música é justificado no documento por conta da "Ligação Amorosa Irregular e comentários pouco convenientes". Para Lima, "essas argumentações evidenciam a censura ao que fosse moralmente condenável. O casamento como instituição é atribuído como algo que não podia ser arranhado". O pesquisador lembra também que o divórcio ainda não era legalmente instituído em 1974.

3 perguntas // Odair José, músico

Por que você disse que seu novo disco é um despertador para pessoas que estão adormecidas devido a falsas informações?


O povo se apega muito fácil ao que é mais confortável. É aquela ideia de "se não vai ser contra mim, não importa se vai ser ruim pra todo mundo". Isso é o fácil. As pessoas deveriam buscar a informação difícil, que nem sempre é a conveniente. A falsa nos dá aquilo que queremos ouvir. Estamos vivendo em uma época que dizem: “Estão fazendo errado", "estão nos prejudicando", mas não estão tendo a visão honesta do que estão fazendo. No Brasil, aceitamos isso como se não fosse com a gente. Queria ser um despertador nesse sentido. Por isso, cutuquei, e acho até que deveria ter cutucado mais. Temos que ficar atentos. O que acontece lá em cima, na política, é reflexo do que fazemos aqui em baixo.

Nesse sentido, quem apoiou o impeachment de Dilma Rousseff estaria "adormecido"?

Sim. O Brasil era uma carreta possante e desgovernada descendo a ladeira. Uma freada brusca ia provocar capotagem – e não parar a carreta. Em 2014, quando teve a campanha, manifestei minha preocupação com a reeleição da Dilma, porque previa que aquilo não ia dar certo, achava que ia ganhar e não ia levar. Tomara que esteja errado, mas não vai adiantar quase nada disso aí (o impeachment). Estamos caminhando da mesma forma, com os mesmos perigos. A coisa está muito mais difícil, culpa da informação falsa e fácil – "tira a mulher que conserta tudo". Não é assim. Embora a postura dela sempre tenha me incomodado pelo pouco diálogo, mesmo não sendo partidário, não estou vendo novidade nenhuma depois da saída dela. O povo brasileiro tem que ficar esperto, pois a coisa pode feder mais que já fedeu.

Em 1977, quando você lançou O filho de José e Maria, o disco foi censurado e condenado pela Igreja Católica. Quarenta anos depois, há forte escalada dos evangélicos, inclusive na política. Como você vê isso?

Fico impressionado com políticos ou pastores querendo oprimir a opção sexual. Isso não é certo há 2.000 anos. Não gosto disso. Acho bonito a pessoa ter a sua fé, mas temos que procurar melhorar a nossa vida sem nos apegarmos à religião. Não digo que não tem que ter religião, sei que na hora do aperto as pessoas se apegam a ela. Mas não aceito e tenho medo do uso da religião para chegar ao poder. É perigoso. De novo aquela fácil informação: "O pastor disse que isso é bom"... Malandro, procure saber se é bom mesmo!

Show de Odair José
Onde: Estelita (Av. Saturnino de Brito, 385, Cabanga)
Quando: domingo, às 18h
Ingressos: R$ 30
Informações: 3127-4143

MAIS NOTÍCIAS DO CANAL