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Entrevista "O Recife deve permanecer sensível à sua história", diz arquiteto francês Luc Adolphe, diretor do Instituto da Cidade de Toulouse, analisou o cenário atual do Recife e falou sobre a importância do equilíbrio entre sustentabilidade e crescimento econômico

Publicado em: 18/04/2016 10:43 Atualizado em: 18/04/2016 11:46

Pesquisador defende conceito de cidades multipolares. Foto:  Malu Cavalcanti/ Esp. DP
Pesquisador defende conceito de cidades multipolares. Foto: Malu Cavalcanti/ Esp. DP

Como equilibrar desenvolvimento econômico e sustentabilidade? Qual é o papel do poder público neste processo? E o do arquiteto? De passagem pelo Recife, o arquiteto, professor, pesquisador, doutor em engenharia e diretor do Instituto da Cidade de Toulouse, na França, Luc Adolphe ministrou palestra sobre cidades e bairros sustentáveis na Universidade Católica. Adolphe problematizou diferentes perspectivas envolvidas neste debate e apontou algumas soluções para encontrar o equilíbrio necessário. Em entrevista exclusiva ao Diario, defendeu a ideia de cidades multipolares, com a descentralização das atividades culturais e frisou a necessidade de um transporte público de qualidade. Também analisou o cenário atual no Recife e recomendou a preservação do rico patrimônio histórico e arquitetônico da cidade.

Em sua palestra, o senhor comentou sobre a necessidade do poder público tomar para si a responsabilidade da sustentabilidade, do desafio de limitar o fundiário e citou a cidade de Toulouse, na França, como um exemplo bem-sucedido. Como foi a experiência lá e por que é tão importante essa atuação do poder público?
Em algumas cidades francesas, o poder público implementou estratégias a longo prazo a fim de controlar o desenvolvimento com estratégias de preempção [estratégia administrativa que busca preencher todo espaço, criando dificuldade para concorrentes] do fundiário, o que permitiu “congelar” terrenos, impedindo assim, especulações fundiárias.

A ideia é de pré-urbanizar o terreno, implantando ruas e vegetação e desenvolvendo também a diversidade social, introduzindo habitações de interesse social. Outras coletividades trabalham na coerência ‘ordenamento-transporte’ através do plano de deslocamento urbano, associado ao SCOT (Schema de COeherence Territoriale).

O senhor costuma citar o conceito de multimodalidade. O que ele significa e por que deve ser uma preocupação também do arquiteto?
A multimodalidade corresponde à implementação de estratégias que permitam ao longo de um deslocamento, a passagem fácil de um modo de transporte a um outro. Por exemplo: passar de um automóvel particular a um transporte coletivo, graças a um estacionamento rotativo. Os arquitetos participam na implementação desse processo pelo seu trabalho no espaço público e no edifício (ex.: ciclovia, estacionamento vertical, estacionamento para bicicleta, etc.).

Outro conceito trabalhado foi o de cidade multipolar. O que isso quer dizer e que impacto teria para a cidade?
Uma cidade multipolar é uma cidade onde existem vários centros ao lado do centro tradicional, nos quais vão se concentrar as pessoas e os serviços, as atividades econômicas e culturais. Esses centros são conectados entre si por redes de transporte coletivo eficientes. Isso reduz a incidência de engarrafamentos no sentido de um único centro (o centro tradicional), reduz as distâncias para ir trabalhar, comprar, diminuindo a parte dos deslocamentos individuais em automóveis particulares/individuais.

Há uma tendência, nos discursos mais atuais sobre sustentabilidade e mobilidade, de defender a redução do espaço do automóvel e estimular outros meios de transporte, criando espaços seguros para pedestres e ciclistas. Uma das questões apontadas foi a redução da velocidade nas vias, como uma forma de priorizar o pedestre. No Recife essa ideia foi implantada em algumas ruas do Bairro do Recife, mas pouco aceita pela população. Livrar-se do sistema que coloca o carro em primeiro lugar é um desafio? Por que ainda há tanta resistência?
O carro é o meio de deslocamento mais eficaz e rápido nos espaços suburbanos pouco adensados e o mais ineficaz e mais ineficiente do ponto de vista energético nos centros urbanos. O carro é também o transporte que mais consome espaço na cidade. É necessário, portanto, educar as pessoas, usuários incondicionais do carro, mostrando que o deslocamento pode ser multimodal: começando pelo carro, seguido pelo ônibus e terminando pela circulação leve (a pé e de bicicleta), na medida que nos aproximamos dos centros urbanos. Isso passa, por exemplo, por campanhas de comunicação, mas também pelo desenvolvimento de transportes públicos de qualidade e de polos multimodais que nos permitam deixar nossos carros com segurança.

Este ano, a edição da Bienal de Arquitetura de Veneza vai provocar os arquitetos justamente no que diz respeito ao seu papel social, sua responsabilidade com o espaço público, com as comunidades desassistidas, enfim. O senhor acredita nessa responsabilidade? É comum no Brasil que o arquiteto seja um profissional  que existe para realizar delírios, desejos, ligados exclusivamente à estética. Como o senhor vê isso?
A arquitetura deve ser uma resposta às demandas sociais, econômicas, funcionais. Essas demandas são complexas e interativas. O delírio de certos arquitetos que criam edifícios obras de arte, como esculturas fora de contexto e não integrando essas demandas, são fortemente midiatizadas. Eles não são representativos dos principais movimentos arquitetônicos atuais, especialmente os que estão ligados à arquitetura sustentável. É uma pena!

Falando nesta questão e numa perspectiva local, é impossível não citar o projeto Novo Recife. Há uma tendência mundial de ocupação dos espaços públicos pelas pessoas, da cidade por seus moradores e uma perspectiva de integração. O projeto Novo Recife estaria, neste caso, na contramão deste movimento. Como o senhor avalia esta questão tão importante para a capital pernambucana?
Se o Recife quiser guardar seu status de metrópole, deve permanecer em um lugar de equilíbrio entre concentrações de homens, serviços e de bens. O Recife deve permanecer um ecossistema aberto e complexo no qual os interesses de alguns, por exemplo, certos promotores e a porção mais rica da população, não devem fazer com que as pessoas esqueçam os interesses das outras populações, e a necessidade das outras funções urbanas para além da habitação e do comércio nos shopping centers. O Recife deve permanecer sensível à sua história. A história das metrópoles mundiais mostra que estas devem integrar, sedimentar a sua história, a fim de reconstruir-se nelas mesmas integrando todos os habitantes, todos os bens e todos os serviços e não fazendo da cidade uma tábula rasa como é o caso do projeto Novo Recife, que bate de frente com o desenvolvimento do Recife como metrópole.

Na sua visão, qual é o maior desafio que o Brasil enfrenta para equilibrar crescimento econômico e sustentabilidade?
Acredito que o desafio do Brasil para um desenvolvimento econômico sustentável é triplo. Em primeiro lugar a construção de infraestruturas inter e intraurbanas, permitindo auxiliar o desenvolvimento econômico do país em médio prazo e priorizando transportes públicos de qualidade, principalmente nas metrópoles do país, com novas linhas de trem, metrô, VLT e modos de circulação leves em geral.

Outro ponto é a aceleração do desenvolvimento do setor de energias renováveis (solar, eólica, biomassa, hidrelétrica em pequena escala), aproveitando os numerosos recursos do país. E também a redução da demanda energética do setor da construção civil pela saída do modelo internacional de torres de grande altura. “Tudo em vidro”, “tudo climatizado”, enfim. No sentido de um urbanismo e de uma arquitetura mais sensíveis ao clima, à história dos lugares e memória das paisagens.

É possível vislumbrar esse cenário mais equilibrado ou é algo distante ainda?
Eu penso que algumas cidades como Curitiba, por exemplo, são capazes de avançar rapidamente no sentido desse equilíbrio. E para isso, eu citaria três avanços que considero indissociáveis. É preciso uma grande vontade política em todos os níveis administrativos da cidade até o estado; uma transparência financeira; uma ampla participação dos cidadãos no debate público a fim de lhes permitir apropriar-se da democracia no âmbito de uma governança local.

O senhor falou em uma arquitetura que seja mais sensível à história e memórias das paisagens, que é uma discussão atual no Recife, onde novas construções convivem com um patrimônio arquitetônico que muitas vezes não é preservado e não atrai o interesse privado. Como essa relação tem acontecido no resto do mundo e como o senhor a enxerga?
A tábula rasa do passado em cidades novas construídas do nada é hoje obsoleta na maior parte dos países desenvolvidos. No contexto de globalização das trocas, de metropolização galopante e da forte concorrência entre estas metrópoles globalizadas, as cidades que mais se desenvolvem hoje são as que se distinguem das outras pela qualidade da vida, pela qualidade dos lugares, pela especificidade das construções e dos espaços públicos e também pelo respeito à sua história. Acredito que o Grande Recife, com seus grandes espaços de água, seus amplos espaços verdes, o seu rico patrimônio histórico e o seu sítio único, não deve dilapidar esta herança em proveito de políticas e de lucros privados, movidos apenas pelo interesse privado, atão curto prazo.  

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Luc Adolphe é professor do Institut National des Sciences Appliquées de Toulouse. Ele também é pesquisador do Laboratório LRA da Escola Superior de Arquitetura e Diretor do Instituto da Cidade de Toulouse

O que é?

Cidade multipolar
Cidade que não tem apenas um centro econômico e cultural, mas vários, interligados por transporte público eficiente. Com a descentralização, diminuem os congestionamentos e reduz parte dos deslocamentos em veículos particulares

Multimodalidade
Sistema que permite um longo deslocamento usando  vários meios de transporte. Exemplo: usar bicicleta, metrô e ônibus para realizar um trajeto e ter acesso e trânsito seguros e facilitados
 


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