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Lembranças amargas

Aldo Paes Barreto
Jornalista

Publicado em: 09/05/2025 03:00 Atualizado em: 09/05/2025 05:38

Cercado pelo carinho da família, a mulher sentada na cama a segurar-lhe firmemente a mão descarnada pela doença, o coronel Juquinha da Baixa Verde falava com dificuldade colocando na voz sumida a força que os últimos alentos de vida pareciam lhe dar. A trajetória dele vinha de longe, do mais duro Sertão pernambucano, quando as caveiras do gado morto apareciam nos jornais e revistas retratavam os anos de longas e impiedosas secas. Anos sem chover. Tornou-se um retirante. Casou com Mocinha e aventurou-se por São Paulo. Trabalhador incansável, lutou, empreendeu e ficou perto do bom viver.

As coisas melhoraram no novo estado. Ganhou alento e moradia. Mas, agora estava morrendo de um mal incurável. No amplo quarto da casa simples, desligou o celular, chamou os filhos, as filhas, genros e noras para mais perto. Buscou a velha companheira com os olhos. Ela sentou na cama, e ele falou pausadamente:

– Ô! Mocinha... – disse levantando a cabeça, tentando apoiar-se sobre os esquálidos cotovelos. – Esse tempo todo, tantas dificuldades e você ao meu lado. Estou morrendo, Mocinha, e você aqui junto de mim... Ah! Mocinha...

Chorosa, a esposa tentava silenciá-los enquanto colocava travesseiros mais altos em suas costas.

– Não fale, meu velho. Você vai ficar bom...

– Ah! Mocinha... eu lembro quando casamos e seu pai quase me mata...queria um genro rico; escapei por pouco, mas fiquei puxando por uma perna. Manco, que nem papagaio.... Depois, ganhei um dinheirinho, comprei a Fazenda Riachão.

Aí veio a seca braba e acabou com tudo...foi naquela época que a gente fugiu para São Paulo. Quando já estava melhor de vida, montando aquela lojinha lá no Brás, veio o maldito incêndio e queimou tudo. Ah! Mocinha...e você ali junto de mim.

No silêncio do quarto podia-se ouvir o respirar difícil do velho Juquinha em suas entrecortadas e amargas lembranças.

– Ah! Mocinha... depois, a gente voltou. Teu pai morreu e fui tomar conta da Baixa Verde. E novamente a seca quase acaba com tudo. Mas Deus é testemunha: eu lutei, plantei, irriguei e não colhi. Mesmo assim, ainda tinha esperanças, mas aí veio a brucelose acabou com minhas vaquinhas, o nosso Zé Vaqueiro morreu naquele desastre; Joãozinho foi assassinado em Minas, Carlindo paralítico. Dando trabalho ... e você junto de mim, Mocinha...

Agora, desenganado pelos médicos você me animou a procurar tratamento onde quer que fosse. Vendi tudo... Procurei os melhores médicos de São Paulo, dos Estados Unidos, quando um brasileiro ainda podia ir para lá e ser visto como gente. Aquele rapaz pernambucano que é médico lá no Memorial  Center, de Nova York, ainda me deu esperança. Poucas. Fui operado. Peregrinei pelo mundo. Fiz muitos tratamentos. Busquei também naquele curandeiro de Goiás, gastei mais dinheiro, antes dele ser preso. E você junto comigo, Mocinha.

Até ao Vaticano fomos. Mas não pude ver o papa. Ele já estava doente. E você comigo. O papa morreu quando a gente estava lá. Ainda fomos a Portugal, rezamos, fizemos promessas. Aconteceu o apagão e caí na escada do hotel. Quebrei a perna...Piorei. Voltamos para casa. E você junto comigo Mocinha..

– Ô! Mocinha... tu dá uma azar filho da puta!

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