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O comunismo e o hino à bandeira

José Almino de Alencar
Sociólogo, escritor e ex-presidente da Fundação Casa de Rui Barbosa

Publicado em: 03/02/2025 03:00 Atualizado em: 03/02/2025 07:06

George F. Kennan, um dos principais arquitetos da estratégia americana durante a Guerra Fria, confessou que “revendo a história internacional na era moderna, acho difícil  imaginar um acontecimento mais estranho e surpreendente, e à primeira vista inexplicável, como a súbita e total desintegração e o desaparecimento da grande potência conhecida sucessivamente como o Império Russo e a União Soviética.” Recentemente, ao falar sobre as dificuldades atuais da esquerda  de repensar a sua conduta estratégica, o ex-ministro José Dirceu assinalou que talvez na origem de tudo estivesse o que ele   chamou de “o esfarinhamento” da União Soviética. Num átimo, constatou-se o fato consumado, dispensando qualquer explicação mais elaborada. Acabou-se e pronto. Até então, os próprios críticos do regime viam o comunismo Soviético como perene.

Alexander Soljenítsin, um dos seus opositores mais radicais, crítico minucioso que reuniu vasto material histórico  sobre a URSS, fazia desta característica um aspecto central de seu funcionamento. Criaram- se ali procedimentos de intervenção na sociedade que a transformava em um aparelho auto reproduzível e permanente nas suas funções de controle social. Um  organismo  burocrático a serviço de uma casta de dirigentes que ainda se definiam como representando um ideal.

Quando O Arquipélago Gulag foi publicado, um  amigo sugeriu que, estivesse Marx vivo, ele o leria com muita curiosidade pela riqueza de detalhes empíricos na descrição de um universo humano que apresentava uma forma de organização social opressiva e peculiar, exclusiva à contemporaneidade.

Da mesma maneira que ele admirara o monarquista Balzac por similar competência descritiva, ridicularizara o progressista Proudhon por seu humanitarismo ingênuo e utilizara os instrumentos analíticos elaborados por um antepassado dos economistas liberais, D. Ricardo, na formulação de seu próprio sistema explicativo.

Finda a União Soviética, parte do universo progressista passou a minimizar a exemplaridade do “comunismo real”, reafirmando as análises e previsões marxistas que indicavam uma eventual redenção da humanidade pelo socialismo. Arguía-se que aquilo não teria sido o “verdadeiro comunismo” falava-se da busca de soluções nacionais mais autênticas e viáveis, investigavam-se versões mais radicais da social democracia.

Outros singelamente afirmavam a necessidade existencial da crença em uma utopia: um regime de paz, de justiça e fraternidade entre os homens. Trata-se de uma norma arbitrária e ingênua, reconheço, embora às vezes, quando é manifestada com convicção, me comova.

Em seu livro, singelo, embora muito perspicaz, a recifense Maria Prestes conta a seguinte anedota:

A URSS esfarinhara-se e Prestes, já com bem mais de oitenta anos, rompera com o Partido Comunista. No domingo, o casal reunia os filhos para um almoço no seu apartamento, Rua das Acácias, na Gávea.

Em um desses encontros, travou-se como de hábito animada discussão política. O velho mantinha-se calado. Com um canivete descascava  laranjas (em uma única tira) que distribuía entre os presentes. Terminada a tarefa, pegou as cascas, levantou-se e disse:

“Quem sabe sou eu o último comunista no mundo. Comunista, morrerei convicto de que só há  uma possibilidade de salvar a humanidade: socializando os meios de produção, colocando-os a serviço da sociedade. Se o socialismo errou, isso não  significa que o capitalismo acertou. Ninguém vai tirar de mim o direito de ser comunista-leninista e revolucionário”.

“Deu as costas, encaminhou-se na direção da cozinha com suas cascas de laranjas, assobiando a sua música preferida: o hino à bandeira que aprendera na Escola Militar”.

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