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Areia movediça

Rodrigo Pellegrino de Azevedo
Advogado

Publicado em: 01/03/2024 03:00 Atualizado em: 29/02/2024 23:28

A primeira vez que ouvi falar desse tipo de fenômeno foi ainda quando criança. Época de poucas ofertas de filmes e séries em casa, pela televisão, sem “stream” ou “tv a cabo”. Assim alternava entre leitura/futebol/gibi/enciclopédia e a televisão. Foi somente após o primeiro episódio da série “Perdidos no Espaço” no qual o “risco da areia movediça” quase engoliu o “Major Don West”, que passei a imaginar que esse fenômeno seria o mais perigoso da natureza, principalmente quando fui socorrer-me ao meu google possível da época (Conhecer, Barsa, Delta Larousse) e nada vi sobre o tema. Então, o que ficou por muito tempo em minha memória, foi que esse tipo de fenômeno geológico poderia nos engolir, sufocar, matar e destruir.

Ocorre que, mesmo tempos depois de ter aprendido que “as areias movediças” seriam incapazes de matar, passei a desconfiar que, numa era de outras areias movediças, as políticas, muito mais reais e sufocantes, nós poderíamos nos matar. Se não bastasse meu enfado em ter que ler e optar me calar, em meio ao jogo, de lado a lado, no qual o fato de se criticar ambos, ao mesmo tempo, colocava em mim a pecha de “murista, melancia, comunista, fascista, passador de pano, ou coisa pior”, tenho observado que a areia movediça digital das claques, embevecidas de suas certezas, terminam tragando a quem se dá ao luxo de pensar diferente, somente por se auto perguntar: “será que é mesmo assim?”. Infelizmente, tudo se faz para nos levar para o mesmo espaço, na mesma areia, no mesmo buraco, onde, duas “bandeiras” entendem como o lócus único possível para uma libertação ou desenvolvimento de uma sociedade, o espelho de seu próprio umbigo.

Sufocaram o centro como valor no protagonismo político, assassinaram o equilíbrio e a ponderação, além da gramática, claro, quase sempre em ambientes onde o que interessa é trazer o oposto para esse mesmo local, e afundar, para sempre, quem não deseja ali estar. O que será do ambiente institucional após anos nessa tensão? Não sei. Apenas estou convicto de que os três poderes, absolutamente, estão carregados dessa mesma areia, não mais sendo os valores em condições de estruturar uma nação, mas todos eles, parte de um mesmo jogo de poder, sem aderência com o “populacho” que precisa todo dia fazer dinheiro para pagar as contas, morar, comer e se divertir.

Neste cenário de areias movediças políticas, onde os extremos parecem sugar toda a razoabilidade e o discernimento, é preciso, mais do que nunca, evocar os espíritos das grandes almas que, ao longo da história, souberam navegar pelas turbulentas águas da discórdia com a bússola da moderação. Eparrei, Benjamin Disraeli, quando dizia que “... nenhum governo pode ser longo seguro sem uma oposição formidável ...”. O debate, a contestação e a pluralidade de ideias não apenas são saudáveis para a democracia, mas essenciais para a sua sobrevivência, antídoto para a movediça ideologia.

A polarização que hoje testemunhamos não é um fenômeno exclusivamente brasileiro, mas uma tendência global que ameaça o tecido da coletividade. Alexis de Tocqueville, dizia que “...a saúde da sociedade democrática pode ser medida pelo nível de funcionamento de suas associações” e hoje no Brasil, estas associações se transformaram em fortalezas ideológicas, por esvaziamento do ceticismo do centro, que nos faz perder a capacidade de diálogo e, com ela, a essência da democracia.

A história nos ensina que as grandes conquistas da humanidade vieram não da imposição de uma única visão, mas do encontro de diferentes perspectivas. Mandela sabia que “...se você quer fazer a paz com seu inimigo, você tem que trabalhar com seu inimigo ... então ele se torna seu parceiro”, algo particularmente pertinente para o Brasil de hoje, onde a necessidade de construir pontes é mais premente do que nunca.

A areia movediça da polarização ameaça engolir o debate público. Que possamos, juntos, buscar o centro não como um ponto de chegada, mas como um caminho. Que possamos, como dizia Ulysses Guimarães, “temer a desgraça da injustiça, não a desgraça da crítica”. Que a areia movediça da polarização dê lugar a um solo firme, onde as sementes do diálogo, da tolerância e do respeito mútuo possam florescer. Somente assim, construiremos um Brasil não para poucos, mas para todos.

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