A saudosa sucursal
Manoel Bione
Médico psiquiatra e jornalista
Publicado em: 30/11/2023 03:00 Atualizado em: 29/11/2023 23:58
A porta era do tipo vai-e-vem. Parou na entrada um homem todo de branco, alto como a torre de Paris. No ambiente lotado, fez-se um silêncio de gelar o Hitchcock (como diria o Kid Morengueira). Uma voz tonitruante ecoou no salão:
- Bione, o que você tem contra mim?
Mais branco que um papel branco, me levantei e me dirigi ao visitante:
- N-nada, Arthur! Pelo contrário, eu gosto muito de você.
- Mas você nunca falou mal de mim no Papa-Figo, cabra!
As gargalhadas substituíram o suspense reinante.
A cena acima ocorreu no restaurante Dom Pedro, nos idos dos anos 1980. Os personagens foram o saudoso deputado Arthur Lima Cavalcanti e o locutor que vos tecla.
Naquela época, o Dom Pedro era batizado carinhosamente pelo codinome “A Sucursal”. A ele acorriam jornalistas e funcionários das redações, além de artistas, intelectuais e notívagos em geral.
A luta para “fechar” a edição do dia era quase simultânea nos jornais da região. Diario de Pernambuco, Jornal do Commercio, Diário da Noite e Diário da Manhã – e, de quebra, a Rádio Jornal - funcionavam no quadrilátero compreendido pela Pracinha do Diário, Rua Matias de Albuquerque, ruas do Imperador e Primeiro de Março, no centro do Recife.
E o Dom Pedro transbordava. Suas mesas eram compartilhadas por aquela fauna sedenta de bebidas e conversas. Os garçons conheciam e eram conhecidos por todos, pacientemente faziam ligação ou recebiam chamadas para algum cliente habitué. Celulares ainda não eram tão democratizados como hoje. E cenas como a que descrevi acima eram comuns.
Outro prosaico episódio que contar-lhes-ei (Ai!) teve sua prévia algumas semanas antes. Por conta de uma matéria publicada no Papa-Figo velho de guerrilha, recebemos, eu e Teles, seus editores de então, uma correspondência timbrada da Câmara Municipal do Recife, cujo teor era, mais ou menos, este: “Srs. Teles e Bione (...) Cumpre-nos o dever de comunicar que foi aprovado pelo Plenário desta Casa Legislativa o requerimento de autoria do Vereador Vicente André Gomes, (...) propondo um voto de REPÚDIO (em caixa alta no original) (...) ao jornal PAPA FIGO (sic)”. Hilária foi a parte final da correspondência: “No ensejo, apresentamos os nossos protestos de consideração e apreço. a) Vereador Murilo Mendonça, 1° SECRETÁRIO”.
O que motivou o tal voto de repúdio fora uma “matéria” que trazia o seguinte título: “Militante do MNU lança livro psicografado por G. Freyre”. MNU é a sigla do Movimento Negro Unificado, no entanto, nós traduzimos por “Movimento do Negro Nu”. Além disso, o teor do texto é meio impublicável para um jornal como este.
Passado algum tempo, eis que surge no Dom Pedro o indigitado vereador. Eu o vi de soslaio. Aparentando indiferença, continuei o papo que estava levando com o jornalista José Adalberto Ribeiro, quando senti alguém bater às minhas costas.
- Bione, meu amigo, eu sou seu fã!
Era o próprio Vicente André Gomes. Meio constrangido, reagi:
- Porra, Vicente, você bota aquele voto de repúdio na Câmara e ainda vem falar comigo, cara?
- Calma, rapaz, eu fiz aquilo a pedido do pessoal do movimento negro, que é quem me elege. Mas, pessoalmente, eu sou seu fã e não perco um número do Papa-Figo.
Nisso, pediu licença, puxou uma cadeira e ordenou ao garçom:
- Eli, traz uma garrafa de “Black” pra eu tomar aqui com meu amigo Bione!
Assim era o Dom Pedro. Seu proprietário, Júlio Crucho, que fazia as vezes de anfitrião, falecera. Seus filhos ainda mantiveram a casa por algum tempo. As redações se mudaram para outros bairros e a degradação continua devorando o outrora efervescente e alegre centro do Recife.
Mas confesso que senti uma pontada no peito ao receber a triste notícia do fechamento do Restaurante Dom Pedro, testemunha ocular de um tempo e de um grupo. Só me resta, ao encerrar este artigo, compartilhar meu pesar pela morte de nossa saudosa “Sucursal”.
- Bione, o que você tem contra mim?
Mais branco que um papel branco, me levantei e me dirigi ao visitante:
- N-nada, Arthur! Pelo contrário, eu gosto muito de você.
- Mas você nunca falou mal de mim no Papa-Figo, cabra!
As gargalhadas substituíram o suspense reinante.
A cena acima ocorreu no restaurante Dom Pedro, nos idos dos anos 1980. Os personagens foram o saudoso deputado Arthur Lima Cavalcanti e o locutor que vos tecla.
Naquela época, o Dom Pedro era batizado carinhosamente pelo codinome “A Sucursal”. A ele acorriam jornalistas e funcionários das redações, além de artistas, intelectuais e notívagos em geral.
A luta para “fechar” a edição do dia era quase simultânea nos jornais da região. Diario de Pernambuco, Jornal do Commercio, Diário da Noite e Diário da Manhã – e, de quebra, a Rádio Jornal - funcionavam no quadrilátero compreendido pela Pracinha do Diário, Rua Matias de Albuquerque, ruas do Imperador e Primeiro de Março, no centro do Recife.
E o Dom Pedro transbordava. Suas mesas eram compartilhadas por aquela fauna sedenta de bebidas e conversas. Os garçons conheciam e eram conhecidos por todos, pacientemente faziam ligação ou recebiam chamadas para algum cliente habitué. Celulares ainda não eram tão democratizados como hoje. E cenas como a que descrevi acima eram comuns.
Outro prosaico episódio que contar-lhes-ei (Ai!) teve sua prévia algumas semanas antes. Por conta de uma matéria publicada no Papa-Figo velho de guerrilha, recebemos, eu e Teles, seus editores de então, uma correspondência timbrada da Câmara Municipal do Recife, cujo teor era, mais ou menos, este: “Srs. Teles e Bione (...) Cumpre-nos o dever de comunicar que foi aprovado pelo Plenário desta Casa Legislativa o requerimento de autoria do Vereador Vicente André Gomes, (...) propondo um voto de REPÚDIO (em caixa alta no original) (...) ao jornal PAPA FIGO (sic)”. Hilária foi a parte final da correspondência: “No ensejo, apresentamos os nossos protestos de consideração e apreço. a) Vereador Murilo Mendonça, 1° SECRETÁRIO”.
O que motivou o tal voto de repúdio fora uma “matéria” que trazia o seguinte título: “Militante do MNU lança livro psicografado por G. Freyre”. MNU é a sigla do Movimento Negro Unificado, no entanto, nós traduzimos por “Movimento do Negro Nu”. Além disso, o teor do texto é meio impublicável para um jornal como este.
Passado algum tempo, eis que surge no Dom Pedro o indigitado vereador. Eu o vi de soslaio. Aparentando indiferença, continuei o papo que estava levando com o jornalista José Adalberto Ribeiro, quando senti alguém bater às minhas costas.
- Bione, meu amigo, eu sou seu fã!
Era o próprio Vicente André Gomes. Meio constrangido, reagi:
- Porra, Vicente, você bota aquele voto de repúdio na Câmara e ainda vem falar comigo, cara?
- Calma, rapaz, eu fiz aquilo a pedido do pessoal do movimento negro, que é quem me elege. Mas, pessoalmente, eu sou seu fã e não perco um número do Papa-Figo.
Nisso, pediu licença, puxou uma cadeira e ordenou ao garçom:
- Eli, traz uma garrafa de “Black” pra eu tomar aqui com meu amigo Bione!
Assim era o Dom Pedro. Seu proprietário, Júlio Crucho, que fazia as vezes de anfitrião, falecera. Seus filhos ainda mantiveram a casa por algum tempo. As redações se mudaram para outros bairros e a degradação continua devorando o outrora efervescente e alegre centro do Recife.
Mas confesso que senti uma pontada no peito ao receber a triste notícia do fechamento do Restaurante Dom Pedro, testemunha ocular de um tempo e de um grupo. Só me resta, ao encerrar este artigo, compartilhar meu pesar pela morte de nossa saudosa “Sucursal”.
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