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Pérola Negra no coração do Brasil

Og Marques Fernandes
Ex-repórter do Diario de Pernambuco

Publicado em: 31/08/2021 03:00 Atualizado em: 31/08/2021 05:50

Eu presenciei a vaia que Luiz Melodia tomou na primeira apresentação em Pernambuco. Era o verão de 1973. Num final de tarde, no teatro a céu aberto de Nova Jerusalém, os donos da cena eram Toquinho e Vinícius de Moraes. Nós, os milhares de jovens que assistíamos ao espetáculo sentados na grama, fomos surpreendidos quando Vinícius chamou aquele que dizia ser um artista de futuro. Tratava-se do Melodia.

No começo, houve uma certa indiferença do público, mas o repertório novo e a voz suave diferenciada não foram suficientes para conquistar a plebe ignara. Interessada no repertório da dupla principal do espetáculo e contrariada pela intromissão do cantor iniciante, a patuleia sacou do fundo da sua ignorância uma vaia consagradora. Afinal, Narciso acha feio o que não é espelho.

Não sou de seguir a manada. Se não o aplaudi, muito menos o apupei.  Cuidei de prestar atenção no comportamento do artista. Não sorriu nem demonstrou mágoa com a rejeição. Retornou para os bastidores mansamente, mas a mensagem daquele negro muito magro, de cabelo rastafári e roupas coloridas entrou no meu radar musical.

Gal Costa já havia gravado Pérola Negra, do músico, no disco Gal a todo vapor, de 1972. Pouco depois, era vez de Estácio, Holly Estácio ganhar interpretação na voz de Maria Bethânia. Como acontece com os artistas malditos, ele foi lentamente conquistando os fãs. Nos palcos, incorporou ao canto um jeito especial de dançar, tão inconfundível quanto a voz.

As composições de Luiz Melodia misturavam o samba do morro com bossa nova, soul com rock. Nascido no bairro do Estácio, filho do sambista Osvaldo Melodia, era um caldeirão de ritmos que também cantou de Anísio Silva a Zé Keti.

As letras inovadoras, por vezes herméticas, pareciam se harmonizar com a música no infinito da alma. O que dizer de Magrelinha (O sol não advinha/ Baby é magrelinha); Ébano (No núcleo do seu crânio/Deu nós três manchando/quem é quente amando/Sou eu passando); ou Juventude Transviada (Eu entendo a juventude transviada/ e o auxílio luxuoso de um pandeiro)? Outras visitas ao Recife  através do Projeto Pixinguinha, acompanhado de Zezé Mota, resultaram em sucesso. Passou a gostar da cidade. Vida breve que segue.

Eu assisti ao último show de Luiz Melodia no Distrito Federal, em 2015. Além do repertório do disco Zerima, lançado um ano antes, cantou os seus clássicos.  Era marcante a voz em Codinome: Beija-Flor, interpretação que Lucinha Lins, mãe de Cazuza, um dos autores da letra, considerou melhor que a do filho. Estava consagrado e foi aplaudido por cerca de 30 mil pessoas, segundo os jornais da época. Em Brasília, depois dos shows, costumava frequentar o Karecas`s Bar, conhecido pela variedade de cervejas. Até hoje, há uma foto da sua primeira visita estampada na parede do lugar.  

Mas o tudo que se tem não representa nada, como escreveu em Congênito. Aos 66 anos de idade, em 4 de agosto de 2017, um câncer de medula matou Luiz Melodia, no Rio de Janeiro.

Naquele dia, Gal Costa cantora estreava o show Trinca de Ases, ao lado de Gilberto Gil e Nando Reis. O trio fez questão de cantar que o Pérola Negra continuava no coração do Brasil.%u202F

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