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Um Conselho às avessas

Moacyr Araújo
Coordenador geral da Rede Brasileira de Pesquisas sobre Mudanças Climáticas Globais (Rede CLIMA)

Publicado em: 21/10/2020 03:00 Atualizado em: 21/10/2020 06:51

Até o mês passado, parecia ser difícil imaginar o que mais poderia acontecer de retrocesso na política ambiental brasileira. Ledo engano. No dia 28 de setembro de 2020 fomos surpreendidos, mais uma vez, com as medidas revogatórias adotadas pelo Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama).

O Conselho é o principal órgão consultivo do Ministério do Meio Ambiente (MMA), sendo o responsável por estabelecer critérios para licenciamento ambiental e normas para o controle e a manutenção da qualidade do meio ambiente. Ao longo de sua história, o Conselho se transformou na única instância capaz de controlar, em certa medida, a ânsia devastadora de grupos movidos por interesses econômicos que enxergam os recursos naturais como algo a ser explorado de forma imediatista e terminal.

Porém, desde o ano passado, o MMA reduziu e alterou a composição do Conama. O colegiado, que até então contava com 96 conselheiros, entre membros representativos de entidades públicas e de ONGs, passou a ter apenas 23 membros titulares, transformando-se numa espécie de “casa legislativa chapa branca”, onde a única voz a se escutar é aquela que representa o total desinteresse pela proteção e conservação de nosso recursos naturais.

As alterações aprovadas no mês passado, sem qualquer diálogo com a sociedade civil, atingem em cheio as principais normativas que garantiam a preservação mínima de faixas de restinga e manguezais e de entornos de reservatórios d’água, até então consideradas como Áreas de Preservação Permanente (APPs). E como se o estrago já não fosse suficiente, foram também alteradas, na mesma ocasião, as normas que disciplinavam o licenciamento ambiental para projetos de irrigação e a queima de resíduos agrotóxicos e de lixo tóxico, que a partir de agora poderá ser feita em fornos usados para a produção de cimento.

No caso de terras circundantes de reservatórios, abre-se a possibilidade de utilização desenfreada dessas áreas para expansão imobiliária e para a implantação de atividades agrícolas e industriais, facilitando e barateando o acesso à água. Para as áreas de restingas, manguezais, dunas e apicuns, a medida traz também a possibilidade de expansão imobiliária sobre sistemas que prestam serviços ambientais importantes, como a proteção contra o aumento progressivo do nível do mar e continuidade da captação de gases de efeito estufa por ação fotossintética de manguezais, restingas e matas ciliares.

O Conama se transformou assim num Conselho ambiental às avessas que, ao invés de proteger, abandona, ao invés de preservar, destrói. Mas esses e outros lamentáveis acontecimentos recentes não podem, e nem devem, ser analisados de forma isolada. São resultado de uma visão negacionista e autoritária, que não apenas tem quebrado a tradição humanista da diplomacia brasileira, mas tem incluído o Brasil no limitado grupo de países defensores de uma pauta de costumes fundamentalista, e que terminaram por transportar as fogueiras medievais para o nosso Pantanal e a nossa Amazônia.

Criada em novembro 2007, pelo então Ministério da Ciência e Tecnologia, a Rede Brasileira de Pesquisas sobre Mudanças Climáticas Globais – Rede CLIMA vem contribuindo para o debate científico nacional e internacional sobre o papel dos biomas brasileiros na redução das emissões de gases de efeito estufa e no enfrentamento, adaptação e mitigação das consequências do aquecimento do planeta em nosso país e no mundo.

As medidas adotadas pelo Conama contrariam todos os estudos e achados científicos da Rede CLIMA. Evidências científicas similares são igualmente produzidas por diferentes pesquisadores das nossas Universidades, Institutos e Redes de Pesquisa. Todo esse material evidencia a necessidade de manutenção da suspensão judicial dos encaminhamentos adotados pelo Conama no dia 28 de setembro de 2020. Em muito avançaríamos com a restituição da estrutura original do Conama, com a representação dos atores públicos e da sociedade civil diretamente envolvidos com a preservação de nossos recursos naturais. Só assim, como diz o poeta, teríamos o avesso do avesso.

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