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Demian

Rodrigo Pellegrino
Advogado

Publicado em: 01/05/2020 03:00 Atualizado em: 01/05/2020 06:50

A virada de 2019 para 2020 ficará convencionada como fim do século 20; assim como o ano de 1914, em consenso, foi tido como fim tardio do século 19. Ambos fins de séculos marcados por transições abruptas e por pandemias nas suas respectivas proporções. Duas épocas que podem nos levar a conexões nunca dantes imaginadas.

Sonhei essa semana com o livro Demian, de autoria de Hermann Hesse, lido por mim aos 13 anos de idade, e relido aos 16. Literatura estrangeira impactante para mim, adolescente identificado com Sinclair, personagem narrador e pseudônimo do próprio Hesse. Acordei do sonho fazendo as livres associações com o momento atual que vivemos.

Não à toa, Demian, foi lançado em 1919, logo após a primeira guerra mundial e gripe espanhola. Livro que aconselho a todo jovem ou adulto. Ambas épocas hiatos para humanidade, passagem da segurança para a insegurança, de mundo “iluminado” para mundo real, de conforto da certeza para o desconforto do improvável. Esse é o objeto do livro Demian. Um rito de passagem, da infantilidade para a idade adulta.

As pessoas migram da adolescência para a maturidade, assim também o fazem as sociedades. A transição da casa/conforto de mundo idealizado, para a descoberta de um mundo real, desapegado do idealismo simplificado e impregnado de bem e mal ao mesmo tempo, o tempo todo, como faces da existência. A realidade e “vida como ela é”, vida com sonhos e decepções.

A rigor, essa fenda criada no mundo pessoal ou nos modelos de vida, é um fosso que será atravessado, sempre, em trânsito com o bem e com o mal, apresentando-nos nossa pequenez e as ilusões que douravam o tempo imediato anterior. É o que estamos passando. Mudança de universos. Se no livro, Sinclair deparou-se com o personagem Kromer, o mal real; no mundo de hoje, o desconforto da precariedade existencial (Covid19) nos diz que sim, tudo pode acabar.

No livro, Demian salva Sinclair, despertando-o para o mundo como ele se apresenta, diferente do mundo seguro idealizado juvenil, simplesmente por mostrar que a realidade sempre se compõe de duas ordens, a luz e as trevas, e que não somente existem as coisas boas, mas também o lado sombrio, e que o conhecimento dessas duas realidades é o único caminho para o autoconhecimento, passar por isso é inevitável, para o processo de autoconhecimento das pessoas e das sociedades.

O Brasil vive uma transição de dois mundos “perfeitos e idealizados” segundo dois grupos respectivos. O sonho socialista de uma esquerda amante do estado e o delírio voluntarista missionário de uma direita supostamente liberal. Ambos atingidos pelo Kromerdo século 21. Nos falta o Demian, aquele capaz de nos mostrar tanto o bem e o mal, sem o conforto infantil de ilusão da realidade, as ideologias construídas para serem biombos da crítica.

Entretanto, o fato novo abre janelas de inúmeras novas possibilidades, boas e más. E é na transição para esse autoconhecimento coletivo que poderemos melhorar o Brasil. Precisamos ultrapassar a infantilidade de nossas narrativas de conforto ideológico, para redescobrir o erro e o acerto como contingências da política.

Se no século 19 para o século 20, da transição geral da época, sucedeu-se o comunismo, nazismo, fascismo e duas grandes guerras, assim também necessitamos ter em mente que, a consequência final de todo esse momento estará aberta.

No meu sonho em pleno século 21, Abraxas, uma entidade espiritual, espécie de Deus dual, apresentado por Demian a Sinclair, pediu-me para dizer que, no Brasil, todos somos filhos de Caim, inclusive os ministros do Supremo Tribunal Federal.

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