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O "auto" ampliado

José Luiz Delgado
Professor de Direito da UFPE

Publicado em: 18/03/2020 03:00 Atualizado em: 18/03/2020 09:25

Certas obras-primas parecem ter esse condão – o de virem a ser ampliadas. Ser revistas, continuadas, desdobradas. Pelo próprio autor, ou por outros, trabalhando, no entanto, com o mesmo espírito, sem, de forma alguma, deturpar a criação original. Deu-se esse privilégio com o  Auto da Compadecida, do nosso paraibano-pernambucano Ariano Suassuna, magnificamente ampliado por Adriana Falcão, Guel Arraes e João Falcão, e que agora pudemos rever numa nova exibição da Globo.

É, de longe, a melhor adaptação, para cinema ou televisão, da peça já clássica de Ariano. Deve ter havido umas 3 ou 4 – o que basta para mostrar a riqueza daquele Auto, mas esta última, desenvolvida numa série de 4 episódios, é particularmente notável. Inclusive por certo grau de liberdade  relativamente ao original, sem em nada lhe trair o espírito nem a grandeza. Imagino que o autor haja aprovado tudo, e até contribuído para algumas modificações. Mas imagino também que ao menos boa parte se deva ao talento dos roteiristas que recontaram a história. Personagens foram suprimidos, como o frade da versão original: era um contraponto de bom sacerdote, que, a rigor, poderia ser dispensado, como brilhantemente o foi, sem que a mensagem cristianíssima ficasse prejudicada. Outros foram ampliados, como o coronel, e até novos foram criados, como Rosinha e o delegado. E foram esmiuçadas aventuras da picardia nordestina, sobre as quais giram os três primeiros episódios – aventuras daquela esperteza que “é a coragem  dos pobres”, na profunda definição de Nossa Senhora (e essa bela frase não consta, se bem me lembro, do texto original).  

A comédia dessas espertezas, a  riqueza da sabedoria popular nordestina, os tipos humanos inigualáveis de Chicó e do amarelinho João Grilo, aventuras, drama, humor, tudo está no Auto admirável. Mas a essência definitiva, profunda, ouso dizer perfeita, manifesta-se é no quarto episódio – o julgamento, com a disputa entre o demônio e a Compadecida a quem João Grilo recorre, aquela  que nos socorre na hora da morte, como pedimos na oração da Ave Maria, aí quando o homem encontra a sua verdade, “encontra o que procurou durante a vida” (outro pensamento profundo que me parece também não constar do texto original).

Na densidade dos temas abordados no derradeiro episódio da série está a grandeza absolutamente imortal da peça. Grandeza filosófica e grandeza teológica. Do ponto de vista metafísico, a indicação do medo como a razão última das agonias e das fraquezas do homem – medo da pobreza, medo da solidão, medo sobretudo da fatalidade da morte, que é “o único mal irremediável, marca de nosso estranho destino sobre a terra, fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados”. Do ponto de vista teológico, a ênfase na compaixão. Que aceita as nossas fragilidades e valoriza os gestos de perdão, como o dado pelo padeiro à esposa adúltera, esta ainda com a perturbadora explicação (muito superior ao texto original) de que o perdia aos poucos com medo de perdê-lo de vez. O Auto, exemplar “exercício da moralidade”, conclui-se com João Grilo voltando para assustar Chicó e continuar suas travessuras, enquanto não chega a morte definitiva e, com ela, o julgamento verdadeiro.

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