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Abuso do direito de cobrar

Flávio Koury
Advogado

Publicado em: 14/03/2020 03:00 Atualizado em: 15/03/2020 07:35

O Código de Defesa do Consumidor contém, dentre outras, as seguintes disposições:

“Art. 42. Na cobrança de débitos, o consumidor inadimplente não será exposto a ridículo, nem será submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça.

Parágrafo único. O consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável.

Art. 71. Utilizar, na cobrança de dívidas, de ameaça, coação, constrangimento físico ou moral, afirmações falsas incorretas ou enganosas ou de qualquer outro procedimento que exponha o consumidor, injustificadamente, a ridículo ou interfira com seu trabalho, descanso ou lazer:

Pena Detenção de três meses a um ano e multa.”

Tem-se, assim, que, na forma da lei, o ato do credor de proceder à cobrança do seu crédito ou da obrigação que lhe seja devida é, em princípio, lícita, desde que obedeça aos parâmetros fixados nos dois comandos antes mencionados.

Contudo, não é o que corriqueiramente vem acontecendo nos dias atuais, onde grandes e médias companhias, detentoras de centenas de milhares de clientes, terceirizam as cobranças dos seus créditos, encarregando da tarefa empresas de telemarketing e/ou de recuperação de ativos, que, a seu turno, passam a executá-la  através de “operadores digitais¨ (chatbots), que nada mais são do que robôs com a voz imitando a do seres humanos (em inglês, “chat” = conversa e “bot” = robô).

A partir do momento em que tais máquinas começam a atuar, a vida dos supostos devedores torna-se um autêntico inferno, na medida em que passam a receber dezenas de ligações telefônicas durante o dia e à noite, em qualquer horário, dirigidas a todos os números que estejam cadastrados em seu nome.

Aliás, melhor dizendo, ditas ligações, na mesma intensidade, também são efetuadas para vizinhos, parentes, amigos e integrantes do mesmo grupo de rede social do qual o cobrado faça parte, que, assim, passa a ser submetido ao ridículo, ao desdém, ao extremo constragimento de, além de ter que dar explicações a terceiros, ser importunado a cada minuto, esteja no seu local de trabalho, num hospital, enterro, festa, lazer, no trânsito, etc., isso independentemente de ostentar, ou não, a condição de real devedor da prestação buscada.

Como do outro lado da linha encontra-se não um ser humano mas sim um “chatbot” (plataforma digital de software) programado para o desempenho de funções específicas, que formula perguntas previamente selecionadas e somente aceita determinadas respostas, não se torna possível o estabelecimento de um diálogo efetivo, o que impede até mesmo a apresentação de qualquer justificativa por parte do molestado.

A tática utilizada por tais empresas é antiga e simples: vencer pelo cansaço, levando a vítima a um nível de aborrecimento e de constrangimento tão elevado que, via de regra, prefere se submeter ao pagamento que lhe está sendo exigido, sucumbindo, assim, à coação moral imposta pelo seu suposto credor (tanto assim que ditas máquinas, obtendo resposta positiva do devedor, de logo lhes envia, via sms ou outro meio, o código de barras para o imediato pagamento).

Os (ir)responsáveis pelo método de cobrança utilizado bem são sabedores da absoluta ilegalidade que praticam, em nada lhes importando os ditames consignados no Codecom que proibem, de maneira expressa, que, na cobrança de dívidas, seja o apontado inadimplente submetido a constragimentos, ameaças, intimidações, humilhações ou exposição ao ridículo.

Assim atuam na certeza da impunidade, da proteção que o poder econômico lhes proporciona, dado que, nas raras vezes em que são judicialmente acionados, as condenações indenizatórias, quando impostas, o são em valores para eles irrisórios, servindo mais como estímulo do que como punição ou medida educativa.

Nesse cenário, aquele que se encontra vitimado pelas cobranças vexatórias e abusivas contra si procedidas deve, em defesa dos seus direitos, dirigir-se à delegacia de polícia competente e, lá estando, registrar que está sofrendo constragimentos, mediante Boletim de Ocorrência (BO).

Em paralelo, também é recomendável tirar prints  (fotos da tela) contendo a origem das ligações (números utilizados pelas empresas à cobrança, centenas, em regra, com as suas datas e horários).

De posse desse material, cabível se torna o ajuizamento da respectiva ação de reparação de danos, com pedido de tutela cautelar de urgência, para que de logo cessem as cobranças indevidas, sob pena de imposição de multa, sendo aconselhável, destarte, a indicação de ao menos duas testemunhas que possam confirmar os fatos.

Sem embargo disso, de muito bom grado seria a atuação do Ministério Público, haja vista sua condição de instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, encontrando-se, assim, plenamente legitimado, entre outras funções, à promoção do inquérito civil e da ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos.

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