Obesidade infantil Uma nova relação com a comida e o brincar podem aumentar batalhão de ex-gordinhos

Por: Carolina Cotta - Estado de Minas

Publicado em: 24/08/2015 10:02 Atualizado em:

Epidemia global: 75 milhões de crianças serão afetadas pela obesidade infantil até 2025, segundo estimativa da Organização Mundial de Saúde. (Foto: Beto Novaes/EM/D.A Press)
Epidemia global: 75 milhões de crianças serão afetadas pela obesidade infantil até 2025, segundo estimativa da Organização Mundial de Saúde. (Foto: Beto Novaes/EM/D.A Press)

“Pulo corda, faço abdominal e flexão todos os dias. E agora baixei um aplicativo com séries de exercícios de força e cardio (cardiorespiratórios) que ajudam a emagrecer.” A frase é de um garoto que acaba de completar 11 anos, determinado a mudar uma realidade que demorou, mas começou a incomodar. Carmo Vitor Batista Ribeiro foi ganhando peso nos últimos anos, sem que isso chamasse sua atenção. Não era o único em casa, onde uma alimentação desequilibrada e um desinteresse por exercícios e esportes eram a realidade. Quando entrou no escotismo e teve dificuldades para acompanhar os colegas, a coisa mudou. “Não aguentava correr e aí começou a 'zoação'. Percebi que estava muito gordinho e falei com minha mãe que queria emagrecer”, lembra. 

A televisão passou a disputar espaço com a natação. E depois, com o futebol e a academia. Carmo descobriu o prazer de se exercitar. Descobriu também o prazer de superar um desafio e se transformar. “Antes, estragava a brincadeira, porque era o único que não aguentava correr. Agora, até respiro melhor. Também comia muita bobagem. No almoço, enchia o prato, e repetia. No lanche, comia pão com muita manteiga, presunto e 'toddy' preto. Quando penso como era, me assusto. Diminuí bastante a quantidade, como devagar e me sinto satisfeito. Agora, as roupas estão mais larguinhas. As pessoas notam que emagreci. Minha vida mudou, mas ainda quero chegar no meu peso ideal”, comemora. 

Carmo está fazendo sua parte para sair de estatísticas alarmantes. Segundo dados do Sistema Nacional de Indicadores em Direitos Humanos, divulgados este ano pelo Governo Federal, 20% dos adolescentes brasileiros estão com excesso de peso. Na faixa etária entre 5 e 9 anos, uma a cada três crianças pesa mais do que deveria. Nos menores de 5 anos, o índice é de 7,3%. Os indicadores revelam o quadro de transição nutricional brasileiro, com um declínio das prevalências de desnutrição infantil e o aumento das prevalências de excesso de peso. Para a Organização Mundial de Saúde (OMS), que criou a Comissão para o Fim da Obesidade Infantil, trata-se de um dos maiores problemas de saúde no mundo, já que as crianças obesas podem, no futuro, desenvolver doenças graves. 

Genética
O comportamento contribui para esse quadro e é também o recurso para enfrentar outro vilão da obesidade: a genética. Segundo o nutrólogo Mauro Fisberg, coordenador do Centro de Dificuldades Alimentares do Instituto Pensi/Hospital Infantil Sabará e professor do Departamento de Pediatria da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo, a obesidade é uma doença genética modificada pelo meio ambiente. Isso significa que há uma tendência genética para seu desenvolvimento, desencadeado por um desbalanceamento na alimentação e atividade física. A relação não é de causa e efeito. Filhos de casais acima do peso têm uma probabilidade de também o serem, mas intervenções nos fatores não genéticos podem mudar o curso. 

O Saúde Plena ouviu diversos especialistas sobre como mudar esse destino a partir de uma ressignificação da alimentação e da atividade física na vida dessas crianças. Estudos recentes revelam que uma intervenção multidisciplinar, em que a obesidade infantil é vista como um problema multifatorial, tem mostrado os melhores resultados. O processo das crianças é também muito diferente daquele enfrentado pelos adultos que lutam contra a balança. Mas uma questão é comum a todos os casos de crianças que precisam perder peso: a família precisa “emagrecer” junto. Só seu envolvimento no processo pode garantir o sucesso na mudança de hábitos dessas crianças.

Família unida emagrece mais 
O acompanhamento dos pais estimula a criança na busca por hábitos saudáveis e facilita o enfrentamento da obesidade e de suas repercussões negativas

A obesidade infantil começa antes mesmo de a criança nascer. Segundo o pediatra e nutrólogo Mauro Fisberg, se 51% da população brasileira está acima do peso, a chance de duas pessoas nessa situação se atraírem é muito grande. “E a criança desse casal, possivelmente, terá uma combinação de fatores favoráveis à obesidade.” Mas muitos outros aspectos estão envolvidos na gênese do problema. O ganho de peso da mãe na gestação (a média nacional é de 16kg), o tipo de parto e de amamentação (estudos já demonstraram que o leite materno e o parto normal previnem o excesso de peso) tudo influencia. Prematuridade também. 

Se o bebê é prematuro e tem peso muito baixo, é grande a chance de, durante a recuperação, no primeiro ano de vida, ele ser superalimentado tanto pelos profissionais quanto pela família. Se não é prematuro, mas nasceu com baixo peso, também tende a incorporar calorias mais facilmente porque nosso organismo não foi feito para passar fome e usará mecanismos para armazenar essa energia. “Até aqui, então, nada é culpa da criança e também não pode ser considerado culpa da família. Mas pode ser culpa da genética. E é necessária maior orientação dos profissionais de saúde em todas as fases: da gestação ao adolescente”, defende Fisberg. 

A introdução dos alimentos nos primeiros meses de vida pode ser outro fator de risco para o excesso de peso. “Se a criança comer alimentos inadequados para a faixa etária e não houver um equilíbrio, sua alimentação já começou errada desde cedo e, nessa época, não há atividade física para ajudar. Esse início da vida é essencial no desenvolvimento dos hábitos, das preferências por sabores. Se a família não tem limites e não sabe controlar isso quando a criança ainda é um bebê, é grande a chance de ela comer mal, engordando ou tendo carências alimentares. Família com conduta inadequada pode levar tanto à desnutrição quanto à obesidade”, alerta. 

Tradição
Para a psicóloga Valéria Tassara, especialista em atendimento sistêmico de famílias e redes sociais, mestre em ciências da saúde da criança e adolescente e autora do livro Obesidade na infância e interações familiares: uma trama complexa (Coopmed), as questões psicológicas se articulam com questões familiares, sociais, culturais e econômicas. “Não tem como pensar um problema isolado do contexto das relações. Vemos a família como um sistema, com vários elementos em interação. A forma como os pais, avós e tios compartilham valores e crenças pelas gerações em relação à comida vai afetar a relação das crianças com a alimentação”, explica. 

Daí a necessidade de as famílias passarem pelo processo de aquisição de hábitos saudáveis com as crianças. Hadassa Batista Rocha, às vésperas de completar 9 anos, tem apoio total em seu processo de perda de peso. O pai virou o companheiro das aulas de tênis, na qual ela descobriu o prazer em se exercitar. A mãe está emagrecendo junto: já perdeu 23 quilos desde que a família decidiu encarar o desafio em conjunto. Hadassa perdeu seis. Mas nem sempre houve essa cooperação. A mãe de Hadassa, a empresária Renata Batista Guimarães Rocha, de 35, reconhece que a menina tinha acesso facilitado à comida antes da reeducação alimentar. 

Antes, a alimentação não era tão saudável. A menina também tinha dinheiro e liberdade para escolher o lanche na escola. Fora os mimos da avó. “Perdi o controle. Enfrentar essa situação é muito difícil”, lamenta a mãe, que já tinha ido a outros profissionais não havia encontrado ajuda eficiente. Mas nem tudo pode ser justificado com a alimentação. “Antes, ela brincava muito. Os dois últimos anos, em que ganhou mais peso, coincidem com uma maior ligação com a tecnologia. Percebei que ela estava mais preguiçosa. Comprei um cachorro e ela agora corre atrás dele o dia todo. Estamos animados com as transformações. Vida nova por aqui”, anima-se. 

Tempo de tela
As crianças estão se movimentando menos porque gastam seu tempo diante das telas. Um estudo recente demonstrou que ter um eletrônico dentro do quarto, como televisão ou computador, aumenta em até três vezes a chance de ganho de peso. O Brasil é hoje o campeão mundial em tempo de tela, variável que mede o quanto cada pessoa fica exposta à atividade sedentária em um aparato eletrônico como TV, computador, tablet e videogame. O celular não foi considerado no ranking, o que torna o dado, já alarmante, subestimado. Artigo publicado na Revista Paulista de Pediatria constatou que a média diária de tempo de tela é de quatro horas. 

Opção pela responsabilidade
Frederico Costa Greco
Mestre em direito e coordenador do Núcleo de Mediação de Conflitos da Faculdade Batista de Minas Gerais

A obesidade infantil pode ser considerada uma negligência parental?
Vivemos um novo modo de fazer ciências, que busca ligações de sentido em todas as ações de todas as relações. Isso permite uma compreensão mais profunda de determinado contexto. Nessa perspectiva, a relação com os pais pode ser um dos diversos fatores a influenciar um caso de obesidade infantil. Esse paradigma também se volta para o que, de fato, ocorre na realidade da vida. Dependendo do caso, é possível notar ações ou omissões de pais que contribuem para a obesidade do filho. Uma mãe pode, por exemplo, por receio e temor da violência, e até mesmo involuntária ou inconscientemente, superproteger o filho, mantendo-o em casa com atividades que não exigem esforço físico ou maiores interações sociais. Isso pode contribuir, futuramente, para o ganho de peso da criança. Ao buscarmos o sentido das ligações das relações em uma situação concreta não visamos encontrar culpados, mas sim ligações do que contribuiu para o estado atual das coisas. A ideia é a de que as famílias que passam por dificuldades, como a da obesidade infantil, não busquem culpados, mas contribuições e modos de transformação da situação. 

De acordo com a legislação, quais são os deveres dos pais em relação à nutrição das crianças?
As famílias, a sociedade e o Estado devem zelar pela proteção integral da criança e do adolescente: esse é um princípio constitucional. Nesse sentido, as famílias devem proporcionar aos filhos padrões alimentares saudáveis, que, de fato, contribuam para um crescimento saudável em todos os sentidos. Devem cuidar para que o filho tenha uma alimentação balanceada, sem excessos ou desequilíbrios, para se desenvolver em todo o seu potencial. Pela legislação, esse é um dever de todo e qualquer pai ou mãe, ou outro familiar responsável. 

Estado e profissionais da área de saúde também podem ser responsabilizados? 
Eles também são responsáveis; porém, assim como familiares, devem assumir suas responsabilidades voluntária e solidariamente, na medida em que os problemas ocorram, e não serem responsabilizados por terceiros, com punições e correções. A ideia é que todos possam se responsabilizar e não serem responsabilizados. Nessa perspectiva, responsabilidade é algo que se escolhe e não algo que se impõe. O ideal é que cada membro da família e cada servidor do Estado aprenda a se responsabilizar pelo que protegerá a criança em todos os sentidos.


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