A democracia sequestrada

Túlio Velho Barreto
Pesquisador e cientista político da Fundação Joaquim Nabuco

Publicado em: 30/03/2019 03:00 Atualizado em: 31/03/2019 17:00

A partir de 2005, o insuspeito jornalista Elio Gaspari passou a publicar uma série de livros sobre o golpe civil-militar de 1º de abril de 1964 e a ditadura que se estabeleceu no país em seguida. Os relatos ali expostos estão baseados em farta documentação em áudio, sobretudo, mas também textual e iconográfica, que lhe fora confiada pelo amigo e capitão do Exército Heitor Aquino Ferreira, braço direito do general Golbery do Couto e Silva, um dos artífices do golpe e da ditadura, e mentor do Serviço Nacional de Informação (SNI). O acervo dos militares usado tem mais de 5 mil itens. Outra fonte importante foram os arquivos dos EUA sobre o Brasil.

Com mais de 2 mil páginas, a série é composta por livros de inspirados e elucidativos títulos (A Ditadura Envergonhada; A Ditadura Escancarada; A Ditadura Encurralada; A Ditadura Derrotada e A Ditadura Acabada). Ali, o jornalista expõe, inclusive, o grau de conhecimento que chefes militares tinham da eliminação física de seus opositores, indistintamente classificados como “comunistas”; o que, nos dias de hoje, voltou a não soar estranho. Por exemplo, em A Ditadura Escancarada (pp. 402-404) e A Ditadura Derrotada (pp. 324-325), Gaspari transcreve os áudios de conversas do general Ernesto Geisel, recém escolhido pelas Forças Armadas (FFAA) para sentar na cadeira presidencial em seu nome, com o tenente-coronel Arnoldi Pedrozo e o general Dale Coutinho, respectivamente. Geisel é informado acerca da operação no Araguaia e da eliminação física de militantes que lá atuavam, ação que conta com o seu apoio explícito.

A partir da leitura da série, para não recorrer a outras fontes, talvez tidas como “doutrinadoras”, fica claro que o golpe de 1964 representou o assassinato da nossa jovem democracia. Isso a despeito da Constituição Federal (CF) de 1946, que dera início ao período democrático que se estende até o golpe, só ter sido substituída em 1966 com a outorga de uma nova Carta Magna. Ocorre que os Atos Institucionais a violentara e a tornara letra morta. Portanto, o Estado Democrático de Direito não prevalecia mais e a conjuntura autoritária só iria se agravar, sobretudo com a edição do AI-5, em 1968. Esta história, apesar de chefes militares e afins não aceitá-la, o que é preocupante politicamente, mas irrelevante para os anais da História, está escrita. Passados 55 anos do golpe, é necessário escrever a história do recente sequestro da democracia no Brasil e suas consequências.

De fato, com o golpe parlamentar-jurídico perpetrado em 2016, seguido de atos abusivos de parte do Judiciário e de veladas ameaças de alguns chefes militares, a democracia foi sequestrada. E, para usar a linguagem própria de períodos autoritários e apropriada às iniciativas adotadas após a posse do ex-capitão do Exército Jair Bolsonaro e do general Hamilton Mourão, que caracterizam violentos ataques aos direitos sociais consagrados pela CF de 1988, pode-se dizer que tem sido vítima de recorrentes torturas. Se resistirá, ainda não se sabe. O fato é que o golpe de 1964 foi desencadeado a partir de uma ação do general Olympio Mourão Filho, conhecido pelo mesmo sobrenome do atual e real representante das FFAA na chapa eleita em 2018. Aqui, é relevante lembrar o filósofo Karl Marx, que talvez se surpreendesse ao saber que, mais de 130 anos após a sua morte, um certo fantasma ainda é usado como pretexto para golpes e atacar direitos. Em seu mais importante livro de análise política, Dezoito Brumário de Luís Bonaparte, parafraseando uma ideia original de Hegel, Marx já chamava a atenção que alguns fatos parecem ocorrer duas vezes na história: a primeira, como tragédia; a segunda, como farsa. Se vivo fosse, e observando o Brasil, talvez mudasse sua formulação e dissesse que, repetidos tantas vezes em tão pouco tempo, alguns tendem mesmo a ocorrer simultaneamente como tragédia e farsa.

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