Aniversário Alceu Valença 70 anos, sete capítulos: o viajante de três endereços No penúltimo capítulo da série de reportagens dedicada aos 70 anos do músico, a estrada leva Alceu a diferentes portos e torna sua música conhecida no mundo

Por: Larissa Lins - Diario de Pernambuco

Publicado em: 01/07/2016 20:22 Atualizado em: 01/07/2016 20:35

Alceu cruza o oceano e se divide entre as casas em Olinda, no Rio de Janeiro e em Lisboa. Foto: Paulo Paiva/DP
Alceu cruza o oceano e se divide entre as casas em Olinda, no Rio de Janeiro e em Lisboa. Foto: Paulo Paiva/DP

Capítulo seis de sete: o viajante

Se há outros planetas, neles não são produzidos alimentos, nem dejetos. As necessidades físicas são atendidas virtualmente, e as viagens, concluídas por desmaterialização. É o que supõe Alceu Valença, que nesta quinta-feira (1°) completa 70 anos, para quem a Terra já não parece tão grande quanto era na infância, ele deitado sobre os gramados de quintais em São Bento do Una, no Agreste pernambucano. Hoje, se divide entre o Rio de Janeiro, onde se radicou nos anos 1970, Olinda e Lisboa, em Portugal.

Leia mais:
Capítulo um - o desajeitado de São Bento do Una
Capítulo dois - o excêntrico bicho maluco beleza

O músico vê - e canta - paralelos entre as três cidades, pontos de apoio do pai de família enquanto o artista estende as raízes pernambucanas pelo mundo, além-mar. “É um paradoxo. Temos uma rotina cheia de novidades! No entanto, as três cidades têm suas convergências e é aí que reside o nosso fascínio”, conta Yanê, que nem sempre acompanha a sorte nômade do marido, a fim de dar atenção ao filho adolescente. Alceu é do mundo, sua arte também.

Na Holanda, Alceu, Zé da Flauta e outros músicos dividiram casa durante gravações e festivais. Foto: Zé da Flauta/Acervo pessoal
Na Holanda, Alceu, Zé da Flauta e outros músicos dividiram casa durante gravações e festivais. Foto: Zé da Flauta/Acervo pessoal
Nos anos 1970 e 1980, o destino de viajante já se escrevia: nos anos anteriores ao lançamento do LP Mágico (1984), Alceu percorreu a Europa, alugou casa na Holanda, conheceu a França, participou dos festivais de Montreux e Nyon, na Suíça, gravou em estúdios do Velho Continente. O ditadura militar vigente no Brasil o manteve afastado de casa, encorajando a descoberta de novas paisagens e inspirações.

“Embarquei com Alceu pela primeira vez em 1982, quando nos apresentamos em Montreux e Nyon. Wagner Tiso, Milton Nascimento e Alceu Valença dividiram a noite dedicada à música brasileira. Foi nosso primeiro show internacional juntos, mas em 1979 já havíamos gravado Saudades de pernambuco em estúdio parisiense. Em 1984, passamos um tempo na Holanda, gravando Mágico”, lembra Zé da Flauta, que nas últimas semanas publicou 70 fotos com o amigo em seu perfil no Facebook. A homenagem inclui registro da temporada em Amsterdã. As longas cabeleiras dos músicos ao vento, a casa construída sobre o rio se erguendo ao fundo.

“Alceu começou como artista local e seu trabalho foi ganhando proporções. Passou a ser conhecido no Nordeste, depois no Brasil e, por fim, no mundo. A receptividade do público internacional às músicas dele é incrível. Não se trata de um público grisalho, mas massivamente formado por jovens, apreciadores do rock’n’roll. Ele é muito aclamado lá fora”, diz Zé, com quem Alceu dividiu o palco em sua primeira apresentação em Portugal - onde hoje tem residência fixa - em 1984, em show promovido pelo jornal comunista Avante!.

No livro O poeta da madrugada (Chiado, R$ 28), o filho ilustre de São Bento do Una reverencia Olinda nos versos de 7 colinas. Ou seria Lisboa, também formada por sete colinas? Os fios, que são rimas, ligam pontos no globo. P de paixão, outro dos poemas, começou a ser escrito em Porto Alegre (RS) e foi finalizado em Porto, segunda maior metrópole de Portugal. “Foi de um porto a outro, são paralelos importantes do meu caminho”, brinca o músico, consciente das associações.

Os instrumentos musicais, o cachorro Paco, os óculos de sol Ray-Ban e a jaqueta de couro atravessam o oceano Atlântico com Alceu. Em Olinda, o mais afetivo dos lares, guarda fantasias dos carnavais passados, móveis vitorianos, quadros assinados por amigos. No Rio e em Lisboa, endereços entre os quais distribui maior parcela do calendário, leva vida pacata, acompanha a rotina dos filhos, administra agenda de shows. Partir e regressar são verbos frequentes, devem render, em breve, projeto audiovisual dedicado à sua produção artística itinerante, pautado pelas passagens por diferentes coordenadas do globo, com título provisório Metrô da saudade, ideia de Alceu.

Alceu vê paralelos entre as três cidades pelas quais se apaixonou, Olinda, Rio e Lisboa. Foto: Paulo Paiva/DP
Alceu vê paralelos entre as três cidades pelas quais se apaixonou, Olinda, Rio e Lisboa. Foto: Paulo Paiva/DP

DUAS PERGUNTAS: Alceu Valença, músico

Depois de percorrer tantos pontos do globo, o mundo cabe na mão de Alceu? As distâncias que pareciam intransponíveis para o menino de São Bento são, agora, trechos curtos?

A gente pensa que o mar é infinito, mas ele vai dar em outra terra. O mundo é grande, mas não infinito. E o mundo gosta do que é feito em Pernambuco. Eu recebi homenagem no Festival Cantos da Maré, na Espanha, me apresentei no Festival de Jazz de Montreux, na Suíça, cantei ciranda na Europa, me apresentei com artistas da [República da] Guiné. O frevo, o baião, o maracatu… nossos ritmos estão pelo mundo. A música encurtou as distâncias para mim. Mas a verdade, eu acho, é que talvez nem estejamos sozinhos. Talvez exista até outro mundo, outros planetas, onde não precisamos comer ou ir ao banheiro. Os alimentos são virtuais, as viagens são feitas por desmaterialização, você some e reaparece em outro lugar.

Como é ser reconhecido e festejado, mesmo longe de casa?

Eu sou do tempo em que artista não era celebridade. Eu percorria os arredores da minha casa sem que me chamassem, sem que me pedissem selfies. Já pensou? Nem sequer havia celulares para tirar selfies, graças a Deus! (risos). Não havia a mitificação do famoso. A indústria do entretenimento inventou essa coisa de ser famoso. Nos anos 1980, meus frevos tocando a todo momento nas rádios, eu saía pelas ladeiras e brincava carnaval tranquilamente, anonimamente. Pedir foto ou autógrafo era cafona. Mas creio que lido bem com isso, com a exposição. Há dias no carnaval em que troco minha casa em Olinda por um hotel, por exemplo, para poder me deslocar com tranquilidade até os shows. Mas, no dia a dia, cumprimento a vizinhança, quem passa por mim, aqui ou em qualquer lugar do mundo. Às vezes, nas ruas da Europa, por exemplo, falam comigo e eu não sei por que estão me cumprimentando, me esqueço dessa coisa de ser famoso. Isso é bobagem, invenção.



>> COMEMORAÇÃO Alceu se apresenta nesta quinta (1º) à noite, dia em que completa 70 anos, em Afogados da Ingazeira, no Sertão pernambucano. No sábado (02), sobe ao palco da Fundição Progresso, no Rio. Não foi planejada turnê comemorativa, embora documentários, reedições de discos dos anos 1970 e o lançamento do DVD Vivo! Revivo! sejam projetos engatilhados para os próximos meses, concebidos em torno da data. "Devo sair para comer com minha esposa, meus filhos, falar com amigos. É um dia como outro qualquer", diz Alceu sobre o aniversário.



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