Xilogravura Prestes a completar 80 anos, J. Borges abre as portas do ateliê em Bezerros para fazer balanço sobre vida e obra

Por: Fellipe Torres - Diario de Pernambuco

Publicado em: 06/12/2015 13:12 Atualizado em: 06/12/2015 16:10

Foto: Fellipe Torres/DP
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Um dos primeiros Patrimônios Vivos a serem reconhecidos pelo governo de Pernambuco, o ex-carpinteiro José Francisco Borges demonstra vitalidade e precisão na hora de talhar a madeira, técnica responsável por torná-lo mestre da xilogravura. Prestes a completar 80 anos, em 20 de dezembro, acumula 308 cordéis escritos e já perdeu as contas das matrizes produzidas para a confecção de gravuras. Autodidata em vários aspectos, frequentou a escola por apenas dez meses, com interrupções decorrentes de mortes na região atribuídas ao papangu. Detalhes como esse raramente são contados por J. Borges em entrevistas (os repórteres fazem quase sempre as mesmas perguntas, ele reconhece). Às vésperas do aniversário, o artesão abriu as portas do ateliê em Bezerros, no Agreste do estado, para longas conversas com a reportagem do Viver. No bate-papo sem hora para acabar, contou piadas, episódios engraçados, refletiu sobre a vida, a morte, as horas de trabalho e diversão, a cultura pop, o passado e o presente. Na despedida, o convite para voltar quando quiser e telefonar quando precisar. Voltaremos, Borges!



Octogenário
Em 1984, ao descobrir a idade de J. Borges (àquela altura, 49), um colega afirmou com veemência: “Pronto, agora só falta um ano para você se acabar. O homem não vale mais nada depois dos 50 anos”. Ressabiado, o artista viu o cinquentenário passar e, felizmente, não “se acabou”.  Para ele, a profecia do amigo se mostrou um embuste. Acredita ter construído e vivido mais intensamente nas últimas três décadas, se comparadas às cinco primeiras. Enquanto entalha na madeira a imagem de um pássaro, arrisca: “A vida boa, mesmo, é depois dos 50, porque você já tem experiência para só errar se quiser. Aliás, se tiver saúde, qualquer tempo é bom. Vou completar 80 e continuo minha vida do mesmo jeito, até que um dia sei que vai acabar, mas não penso. Até acontecer, estou por aí”. Para Borges, um homem só fica velho quando se considera como tal. O tempo só nos obriga a curtir a vida de formas diferentes. “Cada década é uma nova vida, e você precisa se adaptar a ela, ao corpo, que vai rejeitando umas coisas e aceitando outras. Os gostos também mudam”.
 
Foto: Fellipe Torres/DP
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Workaholic
O ateliê pode parecer caótico à primeira vista. É misto de galeria, estúdio de arte e marcenaria. Entre pedaços de madeiras, folhas de papel, batidas de martelo e barulhos de serra elétrica, contudo, há uma harmonia orquestral, conduzida por um maestro metódico. Filhos, cunhados, netos, todos se revezam nos trabalhos atentos aos comandos sutis. Para ele, o ofício é terapia. Não troca minuto de descanso em casa pelo prazer do serviço, sobretudo se envolver a parte da qual mais gosta, o corte da madeira. Carpinteiro na juventude, mantém o manejo da lixa e da serra de mesa. Exibe com orgulho as cicatrizes nas mãos e nos dedos, decorrentes de pequenos e grandes acidentes (já precisou escolher entre amputar dedo na junta ou mantê-lo “menor e com a cabeça horrível, mas com unha”. Foi na segunda opção).
 
Foto: Fellipe Torres/DP
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Rico
Um folheto de cordel custa R$ 2 no ateliê-museu de J. Borges. Algumas encomendas alcançam facilmente a casa dos milhares. Mas dinheiro não é um assunto de muito interesse para o inventor da xilogravura colorida. Ele se diz rico não por ter grande fortuna, mas por não dever nada a ninguém, ter os próprios imóveis e renda suficiente para manter o estilo de vida simples. “Considero isso riqueza, enquanto tem muito milionário por aí endividado, preocupado com as contas. Riqueza é ter manutenção, amizade e saúde. Viver a vida tranquilo”.
 
Foto: Fellipe Torres/DP
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Político
Em 1988, J. Borges decidiu concorrer a vereador em Bezerros. Como era de praxe na região, gastou muito dinheiro pagando bebida e comida para os possíveis eleitores. Um outro candidato, vizinho, só espreitava. Na abertura das urnas, o cordelista amargou derrota, com apenas 82 votos. O vizinho se elegeu com 570. “Desde aquela época, a política é uma máfia danada. Pelo menos peguei todos os pormenores, aprendi quem presta e quem não presta”.
 
Saudoso
É difícil para J. Borges não lembrar das perdas recentes. Nos últimos anos, muitos amigos morreram, entre eles Liêdo Maranhão, Eduardo Galeano e Ariano Suassuna (“meu grande ídolo, padrinho de arte, a pessoa que mais considerava na vida, que clareou minha vida e me tornou artista”). “Eram pessoas importantes, que me amavam. Tudo isso acabou-se. Não é bom a gente pensar que continua vivendo e nossos amigos do tempo da força, saúde, mocidade, não voltam. E a gente está para ir naquele caminho. Não pode se impressionar, senão não faz mais nada.” Apesar de cabisbaixo, ele encara o assunto com leveza, ao comentar o Ariano “peba”, referindo-se ao filho nomeado em homenagem ao mestre, Ariano José Borges, 35. A escolha do nome, quando o herdeiro nasceu, foi questionada pelo criador do Movimento Armorial, a quem Borges respondeu: “Foi um jeito de eu lembrar para sempre de você”. Se tivesse outro filho, hoje, nomearia Eduardo, para nunca esquecer de Galeano e do ex-governador de Pernambuco, por quem nutria carinho e respeito. 
 
Foto: Fellipe Torres/DP
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Noveleiro
As novelas de Dias Gomes e Janete Clair foram as melhores até hoje, na opinião de Borges, para quem O bem amado, Tieta e Aritana foram folhetins inesquecíveis. Hoje, o único grande talento, para ele, é Walcyr Carrasco (“faz novelas excelentes, com muito humor”). Na música, mais saudosismo de Borges, em cujo rádio só tocam bregas, canções românticas e forrós. Ídolos, Luiz Gonzaga (“sou fanático, porque no meu tempo de criança e adolescente era o som que se ouvia. Asa branca é o hino de Pernambuco”) e Nelson Gonçalves. “Dos novos , dizem que Luan Santana é o melhor. Não gosto. Grita muito, a música é uma loucura”.
 
Foto: Fellipe Torres/DP
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Papangu
Na década de 1950, quando tinha 15 ou 16 anos, era um dos líderes do pequeno grupo de papangus da cidade. Eram menos de 30 garotos vestidos com roupas usadas e máscaras improvisadas. A bebida preferida era Zinebra Gato (“doce e forte de a lágrima pingar do olho”). Uma casa abandonada servia de “quartel general” para a turma se encontrar antes de sair pelas ruas e pelos sítios. Pouco depois, mudou-se com a família para a Mata Sul, onde morou em Escada e Ribeirão. Quando retornou à cidade natal, 15 anos depois, os papangus já passavam de 200. “Hoje em dia é um carnaval enorme, mas a tradição está morrendo, porque falta incentivo do governo. Eu já ajudei muito confeccionando bandeiras, agitando o movimento”.


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