Fotografia
Fotógrafo reconstrói memórias de pernambucanos afetados pela ditadura militar
Italiano radicado no estado reconstrói, com licenças poéticas, memórias de histórias amputadas pela ditadura militar em Pernambuco: projeto vai virar livro e exposição
Por: Larissa Lins - Diario de Pernambuco
Publicado em: 06/09/2015 10:00 Atualizado em: 04/09/2015 18:04
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Vítimas da ditadura militar em Pernambuco se tornam personagens do projeto do fotógrafo italiano. Foto: Diego Di Niglio/Divulgação |
Analfabeto aos 20 e poucos anos, Gregório trabalhava como jornaleiro na década de 1920, quando começou a se interessar por política - graças a colegas que liam matérias “engajadas” nos jornais, durante as entregas. Após o golpe militar de 1964, Gregório “transformou-se” na sigla Pl4311, número de registro conferido pelos militares, e virou símbolo da resistência pernambucana contra o regime.
Cinquenta anos após a detenção - quando foi cruelmente submetido a sessões de tortura e, por fim, arrastado pelas ruas do bairro de Casa Forte, na Zona Norte do Recife - a tragédia empresta a sigla de identificação Pl4311 ao projeto do fotógrafo Diego Di Niglio, italiano radicado em Pernambuco. Autor do catálogo Instantâneas da África - produzido em comunidades quilombolas do estado e lançado no ano passado - ele está debruçado, agora, sobre memórias das vítimas locais da ditadura.
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Além da mostra, Diego vislumbra a gravação do documentário Marcas da memória - História oral da anistia em Pernambuco aos 50 anos do golpe militar de 1964, contemplado no edital deste ano do Funcultura, com o mesmo recorte temático. “Tento fugir do fotojornalismo engessado, para mostrar histórias inacabadas e, às vezes, dar novos desfechos a elas”, explica.
Com colaboração do professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Antônio Montenegro e do pesquisador e historiador Pablo Porfírio, Diego di Niglio coleta memórias turvas, visita mães que nunca reencontraram os filhos e filhos que não chegaram a conviver com os pais. Não é tarefa fácil. “Quero mostrar as pessoas, a história do ponto de vista delas, de forma criativa, autoral, emocional”, define.
Através de fotografia documental, registra objetos antigos - jamais recuperados pelos detidos durante o regime - e reconstrói cenas vividas ou imaginadas no passado. O retorno do líder estudantil Fernando Santa Cruz ao lar, por exemplo (algo que nunca ocorreu), é transformado em autorretrato - o contorno do próprio Diego cruzando a porta entreaberta, com relógio sobre a mesa. “Ele foi levado quando o filho tinha pouco mais de um ano, a idade que o meu filho tem agora. É muito impactante”, conta o italiano.
Nas próximas semanas, Diego lança blog com os bastidores da pesquisa, que deve ser finalizada no próximo semestre. O monumento Tortura Nunca Mais, fotografado por ele no Centro do Recife, refletido em espelho, ilustrará o site. “Não poderia ser mais simbólico.”
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Os objetos resgatam e, às vezes, modificam as histórias dos personagens. Fotos: Diego Di Niglio/Divulgação |
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Os personagens históricos cujas vidas são investigadas pelo fotógrafo para narrar os anos de chumbo
Sobre Abelardo da Hora, artista, perseguido e preso pelo regime
“Tenho frequentado a casa dele, onde fotografo ambientes e objetos pessoais. Abelardo da Hora Filho me ajuda a reconstruir as memórias do pai, preso diversas vezes durante o regime militar. Há poucas fotos e documentos da época, pois muito foi queimado sob acusação de material subversivo. Dentro de uma jaula, Abelardo testemunhou a tortura de vítimas contemporâneas, como Gregório [Bezerra].”
Sobre Fernando Santa Cruz, militante estudantil desaparecido
“O líder estudantil foi levado quando o filho tinha pouco mais de um ano de idade. Tenho conversado com a mãe dele, Dona Euzita Santa Cruz, autora do livro Onde está meu filho?, sobre o desaparecimento. Me tocou bastante vê-la recitar um poema antigo, cuja autoria desconhecemos, sobre uma mãe à espera do filho. Talvez ela o aguarde até hoje.”
Sobre Francisco Julião, líder das Ligas Camponesas
“Um dos personagens com registros mais fortes do cárcere, o líder político escrevia pequenas cartas e as enviava para fora da prisão, escondidas na fralda da filha, Isabela, durante as visitas. Estão no livro Até quarta, Isabela, que explora a luta política da época. Julião era engajado com o movimento das ligas camponesas pela reforma agrária, outro ponto abordado no meu projeto.”
Sobre Gregório Bezerra, militante torturado e morto pelos militares
“Escolhi Gregório como personagem central, intitulando o projeto com o número da ficha dele, pelo simbolismo que teve na resistência. O filho, Jurandir, é minha ligação com as memórias dele. Outros personagens, como Abelardo da Hora e Tereza Costa Rego, também se lembram dos momentos de tortura sofridos por Gregório na detenção. Ele foi espancado e arrastado pelas ruas. Um dos caso de extrema crueldade.”
Sobre Miguel Arraes, ex-governador de Pernambuco demovido pelo regime
“Resgato muitas informações sobre ele através do Instituto Miguel Arraes. Foi um personagem político, deposto do governo pelos militares. Tem grande significado na história política do estado, não poderia ficar de fora. Será representado na mostra por objetos pessoais, como cachimbo e documentos. Há imagens de objetos que se tornam mais impactantes do que retratos das próprias pessoas, especialmente depois que partiram.”
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