Pracinhas
''Ainda sonho combatendo e com os amigos'' diz o último pracinha ainda vivo em pernambuco, aos 101 anos
Severino Gomes de Souza, o Capitão Souza, último pracinha vivo de Pernambuco, recorda sua atuação durante a Segunda Guerra Mundial.Publicado em: 01/05/2025 04:00 | Atualizado em: 30/04/2025 19:10
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Capitão Sousa, pracinha, veterano da segunda guerra (Rafael Vieira) |
Com apenas 17 anos, Severino Gomes de Souza, não hesitou em escrever um ''sim'' tão grande quanto sua disposição de entregar o corpo e o coração à pátria.
Nascido no Rio Grande do Norte, potiguar de origem, comumente conhecido como Capitão Souza, atravessou o Atlântico como voluntário da Força Expedicionária Brasileira (FEB) e retornou do front com a alma marcada por trincheiras, lutas, perdas e memórias que nem o tempo %u2013 ou mais de cem anos de vida %u2013 apagaram.
''Eu saí direto do banco escolar para me candidatar como voluntário para o Exército. Naquela época, o ensino frisava o amor à pátria'', relembra Severino, com a lucidez de quem carrega uma história maior que ele próprio. Sentado com os olhos atentos e a voz embargada, ele recorda em entrevista dada ao Diario de Pernambuco há quase 80 anos, os capítulos de uma saga vivida por brasileiros que embarcaram rumo à Segunda Guerra Mundial para combater o nazifascismo.
Severino era só um adolescente quando o mundo se despedaçava em batalhas. Ainda assim, a convocação não o assustou. Muito pelo contrário. ''Foi imediatamente. A última pergunta do questionário era essa: 'Participaria?' Eu botei um 'sim' do meu tamanho.'' E foi assim, de peito aberto e olhar firme, que ele deixou os estudos e os braços da mãe, que, em casa, todas as noites rezava um terço pelo retorno do seu filho. ''As orações dela eram de mãe, têm um poder extraordinário.''
Na época, quase 70% dos brasileiros eram analfabetos. Por saber ler e escrever, se destacou no exército, cumpriu suas obrigações e em poucos meses tornou-se cabo e posteriormente tinha sido aprovado no curso para sargento .''Aqueles que tinham conhecimento estudantil eram logo aproveitados para funções de comando.''
Do Brasil até a Itália a viagem durou cerca de 15 dias a bordo de um navio americano, o United States Man. A mudança sua rotação a cada sete minutos para escapar dos possíveis torpedos alemães. ''Era um navio com cinco mil homens. A espionagem alemã sabia do nosso deslocamento, e os submarinos estavam à espreita. Por isso, a viagem era em constante mudança de rumo. Um minuto antes do torpedo ser disparado, o navio já tinha mudado de direção.''
Ao desembarcar na cidade Nápoles, sul da Itália, e depois seguir para Pisa, Severino e seus colegas passaram por mais um estágio de preparação. A língua era uma barreira, porque na época a população não se atentava à importância de outros idiomas %u2014 poucos sabiam inglês, muito menos italiano. ''A comunicação era feita por gestos. Mas dentro do acampamento, éramos uma irmandade. A amizade no Exército é diferente: éramos capazes de nos sacrificar por um colega".
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Capitão Sousa, pracinha, veterano da segunda guerra. (Fotos: Rafael Vieira.) |
O primeiro combate do brasileiro foi em 29 de novembro de 1944, no então Monte Castelo %u2014 um ponto estratégico, que ficava sobre a rota 64, passagem na qual os suplementos ingleses que estavam em outra frente, transitavam. ''Os alemães estavam bem %u2018encastelados%u2019. Metralhadora, morteiro, canhão%u2026 Foi um massacre. E ainda tinha a metralhadora apelidada de Lurdinha. Disparava em torno de mil tiros por minuto.'' A batalha foi perdida naquele dia, mas vencida meses depois, em fevereiro de 1945.
''Dessa vez, partimos à noite. Estávamos preparados e tomamos o monte". O feito entrou para a história como a vitória mais simbólica e provou que, sim, a ''cobra pode fumar'' %u2014 expressão originada da descrença da população brasileira, que afirmava que seria mais fácil uma cobra fumar do que o país ir à guerra.
Ao todo, quase 600 militares brasileiros perderam a vida. ''Morreram por tiro, explosão, mina terrestre%u2026 os alemães iam recuando e deixavam minas pelo caminho.'' Severino, por sorte e preparo físico %u2014 ''jogava basquete, era esportivo'' %u2014 voltou são e salvo. Todavia, carregava cicatrizes que até hoje doem.
Entre as memórias mais sensíveis, Capitão Souza relembra a história da enfermeira Virgínia Leite, que durante um plantão fingiu ser a noiva de um soldado ferido, segurando sua mão a noite inteira para confortá-lo.
De volta ao Brasil e ao seio familiar, Severino e seus companheiros foram recebidos como heróis. ''Foi uma festa. O Rio de Janeiro inteiro na Avenida Rio Branco, aplaudindo. As moças beijavam os soldados que chegavam, deixando-os com o rosto cheio de batom.'' Mas a euforia de viver esse título e a história não durou muito tempo. ''O reconhecimento durou pouco tempo. Depois veio o esquecimento. Só mais tarde, com o esforço do Exército, voltamos a ser lembrados.''
Hoje, aos 101 anos, Severino, o último pracinha vivo da história de Pernambuco, vive no bairro de Boa Viagem, Zona Sul do Recife, e mora perto da rua que leva o nome do comandante da sua companhia, o paraibano Edison Amâncio Ramalho.
No pós-guerra, Severino nunca teve condições de retornar à Itália para visitar os monumentos e o cemitério de Pistóia, onde foram enterrados muitos brasileiros na época. Sem arrependimentos. %u201CA gente lutou por um Brasil que acreditava na justiça e na liberdade. Faria tudo de novo.%u201D
Severino Gomes de Souza, o Capitão Souza, é um símbolo que ajuda a manter viva uma parte extraordinária da memória brasileira viva%u2014 aquela que insiste em resistir ao tempo, ao esquecimento e ao silêncio.