Lançamento

Lia de Itamaracá: história da mulher por trás do título de patrimônio vivo da cultura pernambucana é contada em livro

A obra 'Lia de Itamaracá: 75 anos cirandando com resistência, sorrisos e simplicidade' será lançada nesta sexta-feira (11), no Bairro do Recife

Publicado em: 11/01/2019 09:00 | Atualizado em: 11/01/2019 14:43

A artista está se preparando para embarcar para mais uma turnê internacional e em produção para o lançamento de um CD e DVD. Foto: Camila Pifano/Esp.DP.
Os dedos foram se entrelaçando a partir de um sonho antigo: ter a vida narrada em palavras. Cada um chegou com um pouco e de repente, de mão em mão, mais uma ciranda se formou em torno de Lia para transformar ideia em realidade. Para reverenciar a história de luta e perseverança de Maria Madalena Correa do Nascimento, a mulher negra da Ilha de Itamaracá por trás do título de patrimônio vivo da cultura pernambucana. Prestes a completar mais um aniversário, Lia virou prosa de memórias e fatos inéditos de sua trajetória, no livro Lia de Itamaracá: 75 anos cirandando com resistência, sorrisos e simplicidade, que será lançado nesta sexta-feira (11), no Bairro do Recife.

A rainha da ciranda, conhecida como diva da música negra e celebrada mundo afora por promover encontros de roda ritmados e harmônicos assumiu o papel de se deixar envolver e viu nascer um levante de agradecimento em torno dos seus 75 anos. Para isso, desvelou um lado pouco conhecido. O dos esforços que fez para levar a música adiante numa família de 18 irmãos na sua maioria sem vocação artística, do tempo que passou trabalhando como merendeira em uma escola, do calote que levou no início da carreira pelo primeiro empresário, da vida a dois ao lado do marido Toinho, da época em que teve a casa incendiada e da relação com o produtor Beto Hees. “O que eu mais queria era ver a minha vida escrita. Já fui até ao médico conferir o coração. Ele está preparado”, conta, abrindo o riso.

A obra a ser lançada reúne textos extraídos do livro-reportagem “O mito, a mulher, a ciranda”, trabalho de conclusão do mestrado em Jornalismo pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB) do jornalista pernambucano Marcelo Henrique Andrade, e mais de 100 imagens de mais de 15 fotógrafos. “Passamos 30 meses nos encontrando na casa dela e acompanhamos shows no estado e fora dele para narrar a Lia pouco conhecida e também o reino dela, a forte relação com as pessoas de Itamaracá, mostrar que ela é uma ilustre popular num reino onde o poder público ainda não entende o patrimônio que tem”, afirmou Marcelo. Todo o material foi cedido de forma colaborativa para a obra.

Colaboração, na realidade, é a tônica de um projeto que tem o livro como pontapé de uma programação extensa, que pela primeira vez realizará a celebração do aniversário de Lia de Itamaracá também no Recife. “Já existia um interesse de fazer uma atividade com Lia no Recife, decorrente de uma conexão nossa que começou em 2014, e uma programação que estava sendo planejada para comemorar o aniversário em Itamaracá. E acabamos encontrando esse formato, juntado pessoas que não se conheciam, para provocar as pessoas a viverem a experiência de conhecer um pouco mais do universo dela”, afirma a criadora do Sinspire Hub e curadora do livro, Maria Luciana Nunes.

Esse encontro ocasional de um livro que já estava pronto e da conexão do Sinspire com Lia tomou forma por meio do projeto da Jeep de se conectar à cultura da Zona da Mata Norte, onde a empresa está inserida há quase quatro anos. “Temos como tradição se conectar com as manifestações culturais e sociais do entorno das fábricas. Já tínhamos feito uma aproximação para conhecer a obra de Lia e estávamos querendo produzir algo juntos”, explica o gerente de comunicação da Fiat Chrysler Automobiles, Roberto Baraldi.
Textos foram extraídos de livro-reportagem do jornalista Marcelo Henrique Andrade. Foto: Camila Pifano/Esp.DP (Foto: Camila Pifano/Esp.DP)
Textos foram extraídos de livro-reportagem do jornalista Marcelo Henrique Andrade. Foto: Camila Pifano/Esp.DP (Foto: Camila Pifano/Esp.DP)

O lançamento do livro, que ocorrerá hoje no Sinspire, na Praça do Arsenal, a partir das 17h30, tem como meta arrecadar fundos para a finalização das obras do Centro Cultural Estrela de Lia, espaço de promoção da cultura popular e educacional que a artista mantém na Ilha de Itamaracá e está fechado há quatro anos. Serão disponibilizadas inicialmente 700 cópias da edição, com 80 páginas.

O evento também abre uma sequência de programação que durará todo o fim de semana. No Sinspire, haverá uma exposição gratuita até o carnaval, com mostra fotográfica de Alfeu Tavares, objetos pessoais da cirandeira (vestidos usados nos shows, fotografias da família, objetos carregados de afeto e a boneca gigante do carnaval) e sessões de cinema – curtas-metragens serão exibidos todos os dias, entre as 10h30 e as 11h da manhã e das 14h30 às 18h, até o fim da exposição.

A noite de lançamento terminará com um show tributo com Daúde, Mestre Galo Preto, Mestra Joana Cavalcante, Karynna Spinelli, Romero Ferro, Nego Henrique, Claudionor e Nonô Germano, André Rio, Nádia Maia, Ed Carlos, Roger e a Rural, entre outros. Além de uma ciranda ao redor da Praça do Arsenal. A festa continuará em Itamaracá, ao longo do sábado e do domingo. No sábado, o Galo da Madrugada e o Homem da Meia-noite, que homenagearão Lia neste carnaval, farão um cortejo, a partir das 16h, em direção ao Centro Cultural. Serão 24 horas de atividades, com um luau durante a madrugada e também shows, palestras e ações de conscientização ambiental.

Entrevista // Lia de Itamaracá

Lia de Itamaracá não para e nem quer parar. Sempre com um sorriso no rosto, arrasta as dificuldades, que não são poucas, para debaixo do tapete e toca para frente a carreira reconhecida no Brasil e no exterior. Preparando-se para embarcar para mais uma turnê internacional – a quinta – e em produção para o lançamento de um CD e DVD, em parceria com a Natura Musical, o quarto dessa história, ela conta em entrevista ao Diario detalhes da emoção de realizar o sonho de lançar um livro e das dificuldades que enfrenta para continuar entrelaçando mãos e formando cirandas dentro de Pernambuco.

Por que abrir essas memórias em um livro e revelar um lado pouco conhecido da Lia?
Pelo meu dom, o dom de ser Lia, o dom que Deus me deu, o meu sonho de um dia ser cantora, reconhecida mundialmente e ser feliz pelo trabalho que faço, como eu faço. Venho de uma família que não canta, não dança, não sabe nem para aonde vai. Somos 18 irmãos, mas só eu me interessei pela música, com 13 anos de idade. Com 19, assumi a responsabilidade de me apresentar em Itamaracá e no Recife.

E como começou essa história com a música?
Eu queria cantar música, então me dirigia à praia, me sentava, escrevia as letras da música na areia, a onda vinha e apagava. Aí eu escrevia de novo. Era um jogo de cintura, a onda teimando comigo. Num era num caderno, não. Era uma pedaço de pau na areia. É mole? Escrevi cinco músicas. Cozinhava no meio da semana, trabalhei como merendeira e na secretaria de turismo. Aí no fim de semana ia fazer ciranda. 

Quais os planos que você ainda tem?
Meu sonho agora é ser mais feliz do que sou. Enricar a gente não enrica, mas ser feliz é a melhor riqueza. Ser leve, ter peito aberto, dizer o que você sente, o que você quer, isso é muito importante. É ter uma felicidade tranquila.

E o que falta para atingi-lo? No ano passado, você se recusou a cantar durante o carnaval do estado por falta de pagamento. Essa questão do apoio ainda é uma dificuldade?
Sou patrimônio vivo, mas eles só me tombaram e não tombaram a ciranda. É por isso que o espaço cultura de Lia em Itamaracá está do jeito que está (o centro está fechado há quatro anos, depois que desabou em função de chuvas que atingiram a Região Metropolitana do Recife). Se a ciranda também fosse reconhecida, eu tinha metido a cara e tinha feito o centro já. Mas o dinheiro que dão para Lia só é suficiente para pagar consultas de médico e comprar medicamento. Quem tem diabetes, gastrite, o dinheiro só dá para isso. Me seguro com o dinheiro de aposentada da escola, para afzer o orçamento e os afazeres de casa, comprar uma calcinha, um sutiã.

O que falta para terminar o centro?
Falta camarim, banheiros, palco, sala, piso, cozinha e a área utilizada para fazer os cursos. 

Você é muito ligada a Itamaracá, inclusive pela sua vontade de levar o centro para frente é possível perceber isso. O que a Ilha significa para você?
A comunidade me arrodeia. Sou filha de Itamaracá, já diz tudo. Tenho tudo de lá e a ilha tem tudo de mim. Mas falta apoio. A gestão não ajuda, não chega perto. Como a pessoa tem uma artista local, não é que eu queira ser a rainha da cocada preta, não. Mas se existe uma artista local e não há apoio, interesse? Meu trabalho fora é mais valorizado. Vou lá para fora e parece que já moro ali há muito tempo. Vou de peito aberto, peito erguido. Levanto a minha cabeça, Beto me coloca debaixo do braço e diz: vamos simbora! Faço meus showzinhos e depois volto. Coçando o bolsinho, Lia corre de novo, ganha um pouco e depois volta para casa.

Como é romper essas barreiras de falta de apoio?
Eu não trabalho sozinha, trabalho com uma equipe. É uma responsabilidade grande, com músico, transporte, alimentação. Tem músico da Paraíba, do Recife. Ao todo, é uma equipe de 11 pessoas. A gente busca, faz bonito e depois do pirão feito, a pessoa come e deixa o prato limpo? É triste. E quando a gente bota queixão, ainda acham ruim. É isso que baixa o astral da pessoa. A gente quer cantar, receber e receber muito bem por isso, pois é nosso trabalho. 

E como é ser mulher, negra, de Itamaracá, levando o nome e a música daqui para o mundo?
É maravilhoso, como pobre e negra, chegar lá. Graças a Deus. O que eu quero é cantar e canto. É uma beleza. Lia está no mundo, com as músicas dela. A lia vai chamando o povo para dançar e ele vem. 

Neste ano, você será homenageada pelo Homem da Meia-noite e também pelo Galo da Madrugada. Como está a expectativa para viver esse reconhecimento?
Para mim, são mil maravilhas. É uma das maiores homenagens que me aconteceram. Eu nunca esperei na minha vida e chegou. Em Itamaracá, já fizeram umas coisas ligeiras, mas rigorosamente essa é a primeira. Já recebi muita homenagem, muito prêmio, mas igual a esse não tem. Já estou preparada, com o coração superbom. Deus já me deu poder, força e talento. Deus me disse: faz por ti que eu te ajudo. Eu faço, entrego e ele resolve. 

Serviço:
Livro Lia de Itamaracá: 75 anos cirandando com resistência, sorrisos e simplicidade, de Marcelo Henrique Andrade e fotógrafos
Curadoria: Maria Luciana Nunes/Sinspire
Local: Sinspire Hub – Rua da Guia, 234, Recife Antigo
Quando: Sexta-feira, 11/01 às 17h30
Preço: R$ 15 (show + exposição) ou R$ 70 (livro show exposição)


Os comentários abaixo não representam a opinião do jornal Diario de Pernambuco; a responsabilidade é do autor da mensagem.
MAIS NOTÍCIAS DO CANAL