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Ano Novo, vida velha

Manoel Bione é médico psiquiatra e jornalista.

Publicado em: 03/01/2024 03:00 Atualizado em: 03/01/2024 08:17

Acordei no dia 1° de janeiro sentindo uma leve dor de cabeça. “Champanhe” nacional é fogo. Fui ao banheiro fazer “tudo que se faz dentro do banheiro” (como diria Raul Seixas). Me olhei de cabo a rabo (ops!). Estava tudo igual. Me vieram os mesmos pensamentos, palavras e obras que tinha até a meia-noite do dia 31 de dezembro do ano anterior. Ainda na cama, chegaram até meus tímpanos o som pesado de uma moto “envenenada”.

Em seguida, ouvi o “tum, tum, tum” de um carro, emitindo seu baticum infernal. Já notei que a quantidade de decibéis dos sons tocados nesses automóveis é inversamente proporcional à qualidade da música executada. Escutei ainda as estridentes sirenes de uma ambulância e de um carro de polícia. E tudo continuava como dantes. O fatiamento do tempo, em horas, dias, meses e anos pode ter servido para, entre outras coisas, melhorar a produtividade nas empresas capitalistas. Menos para a transformação humana.

O réveillon como oportunidade para se realizar um Rito de Passagem, na minha opinião, não passa de balela. Dele iria emergir O Novo Homem, como num passe de mágica. Mas, pelo jeito, isso  nunca aconteceu. A humildade, o perdão, a bondade que, de repente, iriam ocupar as mentes e os corações da humanidade, não atingiram seu alvo. Mudar é muito difícil, seu menino! Para isso é preciso força, coragem, energia e determinação.

Ademais, a condição sine qua non para essa mudança é a presença de uma rede de proteção que garanta nosso salto. Como aquela que existe abaixo do malabarista ou a dos bombeiros que a seguram antes de gritar à vítima de um incêndio para pular da sacada do apartamento. Senão, corremos o risco de voar pelo espaço e nos estatelar no chão do desespero ou no abismo da loucura. O medo da mudança é o medo de voar.                

Essa tal proteção está, muitas vezes, ao alcance de nossos olhos e de nossa mão. Porém, de olhar fixo no horizonte, a tentar vislumbrá-la ao longe, não abaixamos a vista, e não percebemos que esse cuidado até pode estar aqui, no nosso quintal. No abraço do amigo, no beijo do ser amado ou até no consultório de um profissional. Simples assim. Há um dito chinês que reza: “Antes da iluminação, limpar a casa, lavar a roupa, cuidar da plantação. Depois da iluminação, limpar a casa, lavar a roupa, cuidar da plantação”.

Cada um desses seres protetores pode estar com a rede segura e até gritar: “Pula, eu te protejo!” No consultório, algumas vezes, atendi clientes que, em desespero, me pediam socorro: “Doutor, acho que estou enlouquecendo!”. E, algumas vezes, cheguei a ir à clínica, fora do expediente, somente para ouvir essa pessoa aflita, que às vezes, repetia: “Acho que estou ficando louco”, ou algo assim. E, para sua surpresa, eu respondia: “Que bom! É sinal que agora você está sendo você mesmo! Quem está enlouquecendo geralmente não percebe, e até acha que os outros é que estão ficando loucos, menos ele”. Ainda guardo um pôster que sempre pregava na parede de meus consultórios. Nele, há uma pessoa em alto contraste, caminhando por uma rua escura. Ao lado da figura, há uma inscrição: “Em algum momento e em algum lugar, hás de encontrar-te contigo mesmo. Que seja a mais amarga de tuas horas ou o teu momento melhor. E isso só de ti depende.”   

Nossa personalidade é construída a partir de decisões afetivas que tomamos na infância. Essas protovivências são propiciadas por mensagens, explícitas ou subliminares, repassadas por figuras parentais que nos criaram e nos moldaram de acordo com seus valores e suas patologias. O termo “personalidade” vem do latim “persona”, que eram aquelas máscaras que os atores usavam na interpretação das peças do teatro grego. E não mostravam o rosto limpo. E muita gente passa a vida repetindo: “Eu sou assim mesmo, e não posso mudar”. Confundem o “si mesmo” com a personalidade – a persona – que carregam.

Há uma historinha simplória, mas interessante. A garotinha pergunta à mãe: “Mamãe, por que a senhora só frita o peixe partido no meio?”. Ao que a mãe responde: “Ora, filhinha, é porque sempre foi assim mesmo. Eu faço assim, sua avó sempre fez assim...” Certo dia, a garota estava na casa da avó e a viu fritando um peixe, então perguntou: “Vó, por que a senhora frita o peixe sempre partido ao meio?” E ela lhe responde: “Ora, netinha, sempre foi assim. Minha mãe sempre fez desse modo”. De outra vez, ao visitar a bisavó, a menina voltou a perguntar: “Bisa, quando a senhora cozinhava, sempre fritava peixe cortado ao meio?”. Ao que a bisavó respondeu: “Cortava, minha milha, mas era porque minha frigideira era pequena e não cabia o peixe inteiro.” Sem comentários.         

Ah! Retornando ao assunto dos votos que recebi, lembrei que também me chegaram muitas mensagens de Próspero Ano Novo. Pela quantidade desses votos recebidos, pode ser até que o “próspero” tenha dado certo. Corri para a gavetinha do criado mudo para me certificar. Lá estava meu cartão da Mega Sena. Ávido, fui conferir. Só acertei um número!

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