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EDUCAÇÃO

Aulas de educação sexual nas escolas resultam na prisão de abusadores em Pernambuco

Diario de Pernambuco encontrou casos em que as crianças denunciaram o próprio pai após assistirem à aula sobre abuso sexual

Jorge Cosme

Publicado: 20/08/2025 às 07:00

Em 2001, o Plano Nacional de Educação determinava a inclusão da educação sexual nas diretrizes curriculares dos cursos de formação de docentes./Foto: Nappy

Em 2001, o Plano Nacional de Educação determinava a inclusão da educação sexual nas diretrizes curriculares dos cursos de formação de docentes. (Foto: Nappy)

Dos 5 aos 9 anos, Marina foi abusada sexualmente durante as visitas quinzenais à casa do pai, em Ouricuri, no Sertão de Pernambuco.

A revelação dos abusos só ocorreu quando ela tinha 13 anos, durante uma palestra sobre abuso infantil em sua escola. Ela narrou que o pai aproveitava o momento que o irmão dela estava dormindo para acariciar as partes íntimas dela e cometer outros tipos de abuso.

O processo judicial teve início em 2018 e o pai de Marina foi condenado por estupro de vulnerável contra sua filha, em continuidade delitiva. Na última semana, ele teve o pedido para responder em liberdade negado pela 1ª Câmara Criminal, do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE).

O caso de Marina não é isolado no estado. O Diario de Pernambuco identificou outros processos que tiveram início a partir da denúncia da vítima durante aula sobre educação sexual e temas correlatos e que resultaram na prisão dos suspeitos. Os nomes das vítimas foram alterados para preservá-las.

“Estalo”

Outro caso envolvendo genitor e filha ocorreu em Floresta, no Sertão, resultando na condenação inicial do pai à pena de 31 anos, nove meses e um dia de reclusão.

Segundo a denúncia, em 2023, a professora relatava uma história para a turma sobre abuso sexual. A vítima, com 10 anos à época, se identificou com o relato e informou que era abusada por seu pai.

Ela foi retirada da sala de aula e ouvida por profissionais da instituição. Contou que sofria abuso há anos e que o pai chegou a filmá-la sem roupa. Segundo a vítima, ela havia sido abusada na manhã daquele mesmo dia.

A gestora da escola, ao ser ouvida durante o processo, destacou que no dia 18 de maio é trabalhada a temática contra o abuso infantil. Naquele ano, escolheram um livro que, segundo ela, tratava da questão da pedofilia de forma sutil e com metáforas.

"Depois do trabalho com o livro, a vítima teve uma crise de ansiedade na sala", narrou. "Pode ser que o trabalho na escola tenha dado um 'estalo' na cabeça dela; que talvez tenha entendido que ela passava por aquilo que o personagem da história passava", disse a gestora ao ser ouvida pela Justiça.

Em recurso contra a decisão, a defesa do homem pediu sua absolvição, alegando que foi denunciado com base em narrativa criada por uma criança, "não havendo uma prova sequer que o coloque como autor do crime".

Em julho deste ano, o desembargador relator do recurso não concordou que havia insuficiência de provas. Entretanto, votou pela redução da pena para 14 anos, 10 meses e 15 dias de reclusão. O voto foi seguido de forma unânime.

Ameaças

Em São José do Belmonte, também no Sertão, Raíssa, de 7 anos, relatou, durante uma aula sobre o corpo humano, que o marido da sua avó tocava seus seios e partes íntimas. O último abuso cometido por ele teria ocorrido um dia antes da aula.

Após a criança relatar os abusos, duas irmãs suas, de 13 e 11 anos, revelaram que também foram abusadas pelo mesmo homem. Uma das jovens contou que os abusos começaram em 2019, enquanto a outra narrou ser violentada desde 2022.

O suspeito ameaçava matar a avó de Raíssa, caso ela denunciasse o que ocorria. Uma das irmãs disse que o homem ofereceu dinheiro para ela ir com ele "ao sofá".

Ele foi condenado a 29 anos e três meses de reclusão em regime fechado pelo estupro das três irmãs. Em julho deste ano, ele impetrou um recurso contra a sentença, que foi negado.

Em Trindade, outra cidade do Sertão, Janaína entendeu que o que acontecia com ela era "errado" porque "os professores falavam dentro de sala de aula sobre aquilo", diz boletim de ocorrência.

Ela já tinha 18 anos quando depôs que havia sido abusada dos 7 aos 9 anos pelo tio, na residência da avó materna.

"Sempre que ocorriam os delitos, o acusado ameaçava a vítima de morte, assim como também ameaçava matar a genitora da vítima caso ela falasse algo. Após criar coragem, relatou tais crimes para a sua avó", dizem os autos. O tio fugiu com a esposa para São Paulo, onde foi preso.

Ele foi condenado a 19 anos e sete meses de reclusão em regime inicial fechado.

Entrada da cidade de São José do Belmonte, no Sertão. - Reprodução/Google Street View
Entrada da cidade de São José do Belmonte, no Sertão. (crédito: Reprodução/Google Street View)

Grande Recife

Em São Lourenço da Mata, no Grande Recife, Aline foi abusada pelo tio dos 10 até os 16 anos.

Ela decidiu finalmente contar a situação durante uma aula temática sobre violência sexual em sua escola, no Recife. “Tocada pelo assunto, resolveu relatar a dois professores e à colega de turma sobre a violência que sofria desde a mais tenra idade, ocasião em que a escola deu ciência ao Conselho Tutelar para adoção das medidas cabíveis”, conta a denúncia.

Segundo a jovem, os abusos ocorriam durante as visitas que ela fazia à casa dos tios nos finais de semana. Conforme os autos, o investigado passou a custear o tratamento ortodôntico da sobrinha e, utilizando o pretexto das consultas de manutenção do aparelho, a levava para uma casa em reforma em São Lourenço da Mata, onde praticava os atos libidinosos.

"Para garantir o silêncio da vítima, valia-se de ameaças contra ela e sua família, inclusive mostrando-lhe uma arma de fogo", acrescenta a denúncia.

O tio foi condenado a 16 anos e oito meses de reclusão em regime inicial fechado. Em recurso, alegou insuficiência de provas e que o depoimento da vítima era controverso e contraditório. O recurso foi negado em março deste ano após análise da 3ª Câmara Criminal do Recife.

Papel das escolas

O Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) desenvolve no Brasil o programa Educação que Protege, que compartilha metodologias sobre o papel da comunidade escolar na prevenção e resposta a violências, além de apoiar governos na construção de políticas e fortalecimento de seus serviços de educação como uma forma de proteção contra violência. No Ibura, Zona Sul do Recife, a iniciativa alcançou mais de 6 mil crianças e adolescentes entre 2023 e 2024.

Segundo a oficial de proteção contra as violências para o Nordeste da Unicef, Corinne Sciortino, o Brasil vive uma crescente de registro de violência sexual contra crianças e adolescentes.

"A maior parte acontece com crianças e adolescentes abaixo dos 14 anos e dentro do ambiente doméstico", ela resume. Segundo Sciortino, o fato de os agressores, em geral, conseguirem o silêncio da criança por estarem inseridos no ambiente familiar dificulta que sejam descobertos.

"Por isso que a escola e a educação têm esse papel fundamental, porque é lá que a criança e o adolescente ficam a maior parte do tempo", diz.

Segundo ela, é importante que a comunidade escolar esteja capacitada para saber como abordar a criança que realiza a denúncia, evitando a revitimização.

"É muito importante que crianças e adolescentes tenham ferramentas para reconhecer as formas de violência, que saibam qual é o toque possível, o que significa consentimento e violência".

O Fundo está começando uma nova edição do Selo Unicef, que durará quatro anos e oferecerá assistência técnica às gestões municipais para o fortalecimento de políticas para infância e adolescência. Em Pernambuco, 152 municípios aderiram ao selo e terão seus indicadores sociais acompanhados.

“A gente espera que em 2028, ao final desse ciclo do Selo Unicef, os municípios de Pernambuco tenham desenhado esses instrumentos de atendimento de casos de violência, que tenham mecanismos de coordenação municipais para tratar sobre isso e que as escolas estejam fazendo práticas pedagógicas de prevenção às violências”, complementa a oficial.

Os ministérios da Educação e da Saúde desenvolvem também o Programa Saúde na Escola, que é implementado pelos municípios e tem como uma de suas ações prioritárias a educação sexual.

O tema, entretanto, já é consolidado no Ministério da Educação. Em 2021, o Plano Nacional de Educação determinava a inclusão da educação sexual nas diretrizes curriculares dos cursos de formação de docentes.

O decreto 11.074, de 18 de maio de 2022, mencionava a "educação sexual abrangente" como diretriz do Plano Nacional de Prevenção Primária do Risco Sexual Precoce e Gravidez na Adolescência.

A edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública deste ano registrou 67.204 estupros de vulnerável no país em 2024.

Ao todo, foram computados 87.545 estupros, sendo 61% contra menores de 14 anos. Os registros de estupro aumentaram 0,9% em relação a 2023, mas, quando o recorte é de vítimas de até 13 anos, o aumento vai para 6,5%.

Os dados mostram ainda que 59% dos estupros de menores de 14 anos foram praticados por familiares, 24% por conhecidos e apenas 16% por desconhecidos.

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