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Foto: Henrique Araujo/Divulgação
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No cruzamento entre o passado e o presente, entre as pedras do calçamento antigo e a vida pulsante das ruas do bairro de Santo Antônio, no centro do Recife, ergue-se um templo da memória e da cultura: o Gabinete Português de Leitura de Pernambuco (GPL-PE). Fundado em 3 de novembro de 1850, o espaço não é apenas uma biblioteca; é um elo vivo entre gerações, continentes e histórias que resistem ao esquecimento.
Inspirado por um sentimento profundo de pertencimento da comunidade portuguesa no Brasil, o Gabinete nasceu do ideal de união em tempos de saudade. Foi o cirurgião e jornalista João Vicente Martins quem, sob o impulso do Comendador Miguel José Alves — então Chanceler do Consulado de Portugal —, liderou a criação do espaço. O projeto tomou forma em uma cerimônia solene realizada no Teatro Apollo, símbolo da efervescência cultural do Recife oitocentista.
Ao longo de seus mais de 170 anos, o Gabinete foi testemunha e protagonista de transformações urbanas, sociais e culturais. Sua atual sede, em estilo neogótico e projetada pelo arquiteto Rodolpho Lima, foi inaugurada em 1921 e hoje impressiona não apenas pela beleza arquitetônica, mas pelo simbolismo que carrega. Em cada vitral, em cada estante de madeira escura, repousa uma história.
O acervo da biblioteca ultrapassa os 60 mil volumes, reunindo obras raras dos séculos XVII, XVIII e XIX, além de literatura contemporânea e preciosidades como um manuscrito do romance A Cidade e as Serras, de Eça de Queiroz, doado pela própria família do autor em 1951. É uma coleção que não apenas preserva o passado, mas ilumina o presente de estudantes, historiadores e amantes da cultura.
Para o engenheiro civil Celso Stamford Gaspar, atual presidente da instituição, o Gabinete vai além da biblioteca: “É um equipamento cultural à disposição da sociedade recifense, pernambucana e brasileira, que propaga a cultura e aproxima Brasil e Portugal. É também um espaço de memória, que honra o esforço de nossos antepassados, muitos deles vindos da diáspora portuguesa em momentos difíceis.”
A ligação de Celso com o Gabinete vem de longe. Filho e neto de portugueses envolvidos com o Real Hospital Português, ele cresceu imerso nas tradições da comunidade lusa no Recife. Hoje, cumpre seu quarto mandato como presidente e tem planos ambiciosos para o futuro. “Nosso objetivo é a modernização da instituição — não só das instalações, mas também da forma de acesso ao acervo. Queremos interligar o Gabinete com outras bibliotecas e fomentar a pesquisa digital”, afirma.
Contudo, a jornada não é isenta de desafios. Localizado em uma área central marcada por insegurança e abandono urbano, o Gabinete enfrenta a dificuldade de atrair visitantes regulares. A revitalização do bairro de Santo Antônio, segundo o presidente, é urgente. “Precisamos do apoio da Prefeitura para que a região volte a ser um local de convivência cidadã. A insegurança afasta o público, e isso fragiliza o papel cultural que o Gabinete desempenha”, lamenta.
Apesar dos obstáculos, o Gabinete se reinventa. A programação cultural é vasta: exposições, lançamentos literários, sessões de cinema português, seminários e recitais de poesia ocupam os salões da instituição. O auditório, com capacidade para 150 pessoas, transforma-se em palco de encontros artísticos. Já o Salão Nobre abriga as principais solenidades, como o Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas.
A acessibilidade também é uma prioridade. O Gabinete oferece visitas guiadas mediante agendamento, com entrada gratuita para alunos de escolas públicas, crianças de até sete anos e guias de turismo. A “Visitação Solidária”, realizada na última quarta-feira de cada mês, converte os ingressos em doações para idosos em situação de vulnerabilidade.
Além do papel cultural, o Gabinete teve, ao longo do tempo, relevância social expressiva. Após a epidemia de cólera de 1855, foi em suas dependências que a comunidade portuguesa se reuniu para fundar o Real Hospital Português de Pernambuco — um dos principais marcos da saúde no estado.
Para Celso Stamford, a permanência da instituição depende também de um novo olhar das gerações mais jovens. “É fundamental que os filhos e netos dos portugueses se aproximem, conheçam a história que herdaram e contribuam com o crescimento do Gabinete. É uma herança material e imaterial que merece todo o nosso cuidado”, reforça.
No Gabinete Português de Leitura de Pernambuco, o tempo não se limita ao relógio. Ele se estende em páginas antigas, em sotaques herdados, em gestos de preservação e pertencimento. Visitar o espaço é mais do que um ato cultural: é uma experiência sensorial e histórica, um reencontro com raízes que atravessam oceanos e se entrelaçam em forma de livro, palavra, memória.