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'É alto-astral mesmo sendo político', diz Russo Passapusso sobre trabalho com Gil

Publicado em: 30/04/2020 08:59 | Atualizado em: 30/04/2020 10:52

O encontro de Gilberto Gil com Baianasystem, do Ijexá com o reggae, fez brotar o álbum Gil Baiana, de um show gravado em Salvador.
 (Foto: Divulgação/Cartaxo)
O encontro de Gilberto Gil com Baianasystem, do Ijexá com o reggae, fez brotar o álbum Gil Baiana, de um show gravado em Salvador. (Foto: Divulgação/Cartaxo)
 
"Eu não vou usar o trivial do ser humano e dizer que tô bem. Eu tô mal, mas esse mal que faz a gente ser melhor”, responde Russo Passapusso, músico e vocalista da banda BaianaSystem, ao Viver. A rotina da quarentena tem sido dura para todos, mas a entrevista foi para conversar sobre coisa boa, um pedaço solar, do verão de Salvador. Um novo trabalho com um personagem ilustre: Gilberto Gil. O disco Gil Baiana - Ao vivo em Salvador, lançado hoje nas plataformas de streaming, foi gravado em novembro de 2019, entrelaçando o repertório e a sonoridade de duas gerações de artistas baianos e da música brasileira.
 
O disco apresenta dois pilares fundamentais, o ijexá, ritmo da Nigéria levado para a Bahia pelos iorubás escravizados, e o ritmo jamaicano do reggae. A gravação é clássica, crua e, com simplicidade, nos apresenta o encontro, que mistura os territórios com Gil adentrando a sonoridade dos soundsystems jamaicanos, e o Baianasystem intervindo em clássicos do cantor. O repertório apresenta músicas como Extra e Emoriô, de Gil, ao lado de Água e Dia da caça, do Baiana. O encontro ensolarado, articulado com diversas questões políticas e étnicas dos artistas, junta-se a outro lançamento de abril da BaianaSystem, o disco Futuro dub, com remixes em versão dub do álbum O futuro não demora.

Entrevista/Russo Passapusso, músico
 (Foto: Mauricio MFR/Divulgação)
Foto: Mauricio MFR/Divulgação
Qual foi seu primeiro contato com as canções de Gil?
Eu ainda morava em Senhor do Bonfim, uma cidade do interior da Bahia de ligação muito forte com o São João e o forró. Não tinha água, era seca no Nordeste e a gente carregava baldes. Nessa época, tive contato com um Gil sertanejo, com as coisas de Luiz Gonzaga. A primeira memória que tenho é de Gil cantando coisas como “a paz invadiu meu coração” e “por ser lá do Sertão / lá do cerrado / lá do interior do mato”, da música Lamento sertanejo. Na época, eu não sabia quem era Gil, mas ele faz parte da minha memória, da minha gênese musical.

E como foi o primeiro contato de Gil com o BaianaSystem?
Como banda, posso dizer que todo mundo é muito fã, desde a parte da tropicália, pelas sonoridades da guitarra baiana também. A nossa relação surgiu muito com o guitarrista Roberto Barreto, que usava constantemente as falas de Gil, até como conselhos para vida (risos). No disco novo, já conversamos muito sobre a coisa do ijexá, que Gil meio que popularizou. Então veio do contato de Coy Freitas, um curador e um incentivador, que me ligou dizendo que queria gravar um grande show, e a gente chegou no nome de Gil.

A seleção das faixas atiça as tensões políticas, mas também traz um momento alto astral do verão de Salvador. Como você vê o lançamento no contexto da quarentena? 
Isso tem muito a ver com Recife e Olinda, inclusive, porque depois que eu saí do carnaval do calor, com cada vez mais gente, onde não cabe mais ninguém e a gente vai respirando o suor das pessoas, ficamos com a pergunta: como serão os futuros carnavais? Ali já estava acontecendo a disseminação do corona no mundo. A gente rodou o Brasil depois. E depois a gente voltou e ficou preso em casa. Foi aí que a gente fez o disco Futuro dub, que é essa sonoridade potente, essa cápsula para respirar dentro de casa. Ao mesmo tempo, queríamos a versão do verão da Bahia, que chegou dentro dessa ideia do show Gil e Baiana, para 40 mil pessoas. Esse som seguiu nossa filosofia de música, que é alto astral mesmo sendo política. É isso que a gente acredita, no chorar sorrindo. Foi um grande quebra-cabeça, mas conseguimos nosso sonho de fazer esse Dub e o Ao vivo em abril.
 
O show teve elementos dos dois, mas no geral não dá para delimitar onde começa Baiana e onde termina Gil. A gente sentou para debater tudo, para pensar uma letra, em identidade visual. No começo, criamos muitas coisas, mas depois concluímos que a simplicidade era a melhor forma. Acho que isso é muito importante: algumas coisas de Gil, que em teoria seriam muito difíceis de entender, com ele todo mundo entende. Isso é maravilhoso. Pegamos então as duas bases, que são o reggae e o ijexá. Sabemos que o reggae tem essa mensagem de revolução, e o ijexá essa relação espiritual. Essas duas pedras preciosas para a vasta discografia de Gil e para o começo da nossa.

Como é que foi esse lado ancestral da interação?
Gilberto Gil é um cara que tem um cuidado com a música. Ele faz ensaio, passagem de som completa, marca o palco. O BaianaSystem acabou pegando a mania da velocidade dos dias de hoje e, nesse show, aprendemos muito com esse cuidado. Eu achava que ele ia chegar pra cantar, mas Gil fez toda parte do processo. Ele elevou o espírito da gente para o espírito da canção brasileira. E de forma simples. O que posso falar desse disco no sentido de ancestralidade é o trabalho, não essa visão moderna de trabalho, mas no sentido de posto ali amor.

Como você enxerga o papel da arte, principalmente da música, nesse colapso do nosso status como sociedade? 
Essa valorização da música está voltando com um processo da valorização das coisas simples no dia a dia. Mas também tem essa coisa da tecnologia que me deixa com o pé atrás. Fico pensando até onde estaremos dependentes dessa tela para nos relacionar. A grande armadilha é pensar até onde as pessoas acham que substitui. Tenho pensando muito sobre isso, sobre a coisa das lives e das marcas. Mas eu também sou público, querendo arte, querendo livro, querendo entrevista.
Eu fico pensando no cuidado pra não ter esse veículo único sendo a tecnologia. Sempre me perguntam sobre a live do Baiana. É importante a gente lembrar que live não é ao vivo. Mas isso não é uma pulga atrás da orelha punitivista, acho interessantíssimo, qualquer maneira de transmitir amor valerá.

Existe chance dessa apresentação do disco entrar em turnê? 
A gente fez esse show já pensando em fazer mais desses. Mas, por conta da pandemia, não ficamos nos cobrando. O processo de criação do show passou muito pela letra, em que a gente entra com a minha letra dentro no formato das músicas do Gil. Isso é muito interessante, porque o Baiana faz muito isso, de chamar pessoas pra entrar no formato das nossas músicas. Com Gil, fizemos assim porque é quem influencia e quem é influenciado. Pensando nessa hierarquia sentimental. Mas sobre o show, a gente até brinca, se um show normal é difícil de ter quando soltarem as pessoas, o Baiana vai ser um dos últimos a voltar. Vão ver as imagens de um chutando a orelha do outro, o outro com suor caindo na boca e vão pensar “esse não vai dar pra liberar” (risos).
 
Ouça o disco: 

 
Repertório:
1.Is this love (Bob Marley)
2.Nos barracos da cidade (Gilberto Gil e Liminha) Incidental: Systema fobica (Russo Passapusso)
3. Extra (Gilberto Gil)
4. Pessoa nefasta (Gilberto Gil)
5. Sarará miolo (Gilberto Gil)
6. Emoriô (Gilberto Gil e João Donato) + Dia da caça (Russo Passapusso)
7. Água (Baiana System) Citação: Água de beber (Tom Jobim e Vinícius de Moraes)
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