ENTREVISTA/ Betinha Fernandes

''Já tive paciente de classe média que foi fazer assalto em prédio''

Pediatra, especializada em Medicina do Adolescente e em Psicoterapia há 35 anos

Publicado em: 09/03/2020 20:39 | Atualizado em: 09/03/2020 21:31

 (Leandro Santana/ DP)
Leandro Santana/ DP
Este fenômeno estatístico do aumento do consumo do álcool se confirma nos consultórios particulares e no SUS?
Sim, hoje o uso está muito mais precoce. Trabalho com adolescentes há 35 anos e posso dizer que entre eles vem crescendo o consumo do álcool, a substância ilícita mais usada no mundo e no Brasil, que conta com um agravante na nossa região. Aqui no Nordeste, tem a questão de gênero e da cultura. Beber faz parte de uma masculinidade e é até incentivado. Dizem: “ Deixa que é coisa de homem”. Ainda existe isso.

Quando e como os adolescentes têm começado a consumir?
A maioria, penso que 90%, começa a usar o álcool dentro do seio familiar. É a permissividade familiar. E tem a prática do consumo da espuminha, ou de mandar a criança ou jovem comprar a bebida ou pegar na geladeira. Isso de experimentar espuminha...de espuminha em espuminha, pode se tornar um problema. Já ouvi mãe dizendo que prefere que filho beba em casa. Aí o adolescente pensa: ‘se pode em um canto, pode em outro’. Hoje também tem sido muito comum o ritual de primeiro porre. Os das classes mais baixas, fazem em qualquer lugar; os mais ricos, vão para uma casa onde o adulto tenha saído.

E de adolescentes de classes mais altas, quais os relatos?
Hoje, em comemorações de 15 anos, existem casos em que a empresa que é contratada pergunta: ‘Com ambulância ou sem ambulância?”. Com ambulância é com técnico em saúde para medicar os adolescente que tiveram intoxicação aguda pelo álcool - e nem é indicado porque o metabolismo do adolescente é diferente do adulto e o profissional não foi formado para lidar com essa diferença. Sei dessa prática por meio de relatos das próprias mães. O poder financeiro dá oportunidade de os adolescentes adquirirem o que querem e em maior quantidade. Eles usam bebidas mais refinadas. Fazem kit festa, misturando o refrigerante com vodca ou bebida energética - o que é extremamente perigoso. Nas classes mais baixas, têm as cachaças misturadas com substâncias coloridas e adocicadas.

Quais as consequências dessa experimentação precoce?
Quanto mais cedo um adolescente ou criança começa, maior pode ser o prejuízo no desenvolvimento neuropsíquico e no amadurecimento cerebral. O álcool é uma substância depressora do cérebro. O que acontece é que anestesia parte do cérebro, então o adolescente fica mais risonho, vai para a pista dançar. Também surgem outros perigos, de ficar mais vulnerável à relação sexual desprotegida e outros riscos. Depois, o efeito do álcool leva à agitação. Se a pessoa tem um lado violento, essa característica vai se avolumar e essa pessoa pode ter um comportamento que teria sem uso do álcool. Eu já tive paciente de classe média que se juntou com outros e foi fazer assalto em prédio. Isso em consultório particular. O efeito depende de muitos fatores, inclusive do estado psicológico. Do ponto de vista prático, uma das repercussões na vida dos adolescentes é prática de não ir pra escola e desviar para um barzinho. Alguns levam roupas dentro da mochila e muitos pais sequer ficam sabendo. Quem não trabalha com adolescente, não tem a experiência de como lidar e não sabe do que uma alcoolização pode levar nessa faixa etária.
 
Quais os fatores de risco?
Quem já tem alguém alcoolista na família, como pai, mãe, tios ou avós têm maior risco. Andar com colegas que fazem uso, do mesmo jeito que outras drogas, também aumenta o risco. E a mídia, porque o adolescente é influenciável e vulnerável à opinião e sugestão.
 
 (Zianne Torres/DP e Ilustrações: Silvino/DP)
Zianne Torres/DP e Ilustrações: Silvino/DP
 
 
Tem idade segura para experimentar e que orientações se dar às famílias?
Se puder adiar à maioridade total, de 21 anos, o cérebro estaria mais desenvolvido e as partes que limitaram a impulsividade. Também estaria resolvida a questão moral. E que as famílias façam o acompanhamento porque o adolescente tem o direito à privacidade mas os pais têm o dever de ter canal de comunicação. E evitar beber diante de filhos, sobretudo as crianças. É preciso lembrar que a criança aprende mais pelo que vê do que pelo que ouve. 

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