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As revolucionárias agricultoras de Bom Jardim

Esta é a história de mulheres que se uniram para buscar uma vida nova, de forma independente

Publicado em: 01/03/2018 07:13 | Atualizado em: 01/03/2018 08:57

AgroFlor de Bom Jardim é formado por 17 mulheres. Foto: Agroflor/Divulgação (Foto: Agroflor/Divulgação)
AgroFlor de Bom Jardim é formado por 17 mulheres. Foto: Agroflor/Divulgação (Foto: Agroflor/Divulgação)

Carla namorou, noivou, casou com o homem com quem sonhava. Era o ideal para uma moça nordestina do interior de Pernambuco, do município de Bom Jardim, e filha de agricultores. Ele tinha outra. “Duvidou que eu me separasse porque eu estava com duas crianças pequenas”. Um menino, Rafael, de cinco anos; a menina, Clara Rafaela, de pouco mais de três. “Cheguei a me perguntar se eu gostava de mim mesma ou não porque permitia isso comigo”. Um dia, Carla Maria de Oliveira e Silva, hoje com 35 anos, deu um basta. E pensou consigo que teria como meta ajudar outras agricultoras a conquistarem a independência financeira desejada. No Grupo de Mulheres do qual é uma das fundadoras hoje são 17 delas.

Pequenas revoluções domésticas têm acontecido em municípios do interior do Nordeste e em Pernambuco e, míopes estando muitos de nós longe, na Capital, nem sempre vemos. Mas podem estar aí os casos mais emblemáticos das recentes conquistas femininas. As mulheres agora já dizem não, a começar pelo modo como se viam.

Acorda às 4h40, enquanto todos dormem, para dar comida às galinhas e aos porcos do chiqueiro. Às 6h, apressa-se para cuidar do café da manhã simples da família. Precisa preparar em tempo o alimento do marido, arrumar a primeira leva de filhos para iniciar o expediente escolar. Ao final, arruma o que pode e segue para o roçado longe de casa. Às 10h, no máximo às 10h30, volta junto com o marido para casa. Ele, descansa. Ela vai preparar o almoço. Tem horário certo para serví-lo, caso contrário, “é reclamada”. O marido tira a soneca pós-almoço, a mulher lava os pratos, limpa a cozinha, passa o ferro nas roupas e começa a rotina da tarde, não menos atarefada. Jornada de 16 horas por dia. Nada incomum. É um registro real.

“Esta é a rotina de uma de nossas associadas, infelizmente. 90% têm mais idade que eu. O pior é que são tratadas como se estivessem ajudando o marido. Não estão. Queremos que essas mulheres se separem? Não. O que esperamos é que eles não as vejam como uma ajuda para o trabalho deles. Que sejam valorizadas”,  explica Carla. Pelo menos uma vez por mês as 17 mulheres se reúnem para conversar ou produzir bolinhos de bacias, quando há encomendas.

Parece uma atividade reduzida. Na prática, contudo, é suficiente para transformar 17 vidas e famílias. Estão buscando independência quanto à renda do marido. Relatam que podem trabalhar 16 horas mas na hora da divisão, muitas vezes, o dinheiro se concentra na mão de um - a do homem. “Tem de estar pedindo dinheiro para qualquer compra. Tem uns que dão tranquilamente; outros não têm a mesma clareza. Possuem o monopólio das finanças da família e acham que, comprando a comida para a mesa, já está mais do que suficiente”, diz Carla.

Fácil não vem sendo. Lembram episódios nos quais mulheres saíram de reuniões revoltadas quando se deram conta do quão diferente é o tratamento social dado à mulher e ao homem, de marido que fez confusão acusando a mulher de ter virado a cabeça com ideias novas. “Situações muito difíceis”, frisa Carla.

Para mim, eis o mais importante para se noticiar ao final das lutas desse que é o primeiro ano de fundação do Grupo de Mulheres de Bom Jardim: Nenhuma das integrantes se desvinculou, mantendo-se firmes nos encontros.

Engajada, Carla é figura ativa no campo e tem sua interface com a cidade. Participa há 20 anos do espaço agroecológico das Graças, uma feira de orgânicos já consolidada no Recife, é da Agroflor (Associação de Produtores Familiares de Bom Jardim), e no município dela integra projetos de capacitação de gestão de recursos hídricos para alimentos. É parte das histórias de conquistas e dos planos para o futuro debatidos no Encontro Regional de Agroecologia (ERê/NE), ocorrido nos últimos dois dias na Associação dos Docentes da Universidade Rural de Pernambuco e que antecede o Encontro Nacional de Agroecologia, marcado para junho em Minas.

Quando se ouve Carla e sua luta por independência feminina, comida saudável, água na torneira se entende o quanto a agroecologia é um caminho de desenvolvimento para um país como o Brasil.
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