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O carnaval de Berê e uma pergunta: que tiro foi esse?

Berenice tem 65, vem de uma geração que contribuiu muito para Momo não se queixar da festa

Publicado em: 07/02/2018 07:56

Foto: Samuca/DP (Foto: Samuca/DP)
Foto: Samuca/DP (Foto: Samuca/DP)

Não creio que haja pessoas refletindo a respeito – até porque parece existir uma força invisível, no reinado de Momo, que desobriga o cidadão de pensar – mas ainda existem senhoras esperando na janela por um carnaval que já não existe. Conheço dona Berê há anos e ela bem que merecia o título de maior foliã de janela do Brasil, porque dali comporta-se como se estivesse em um camarote vendo a multidão do Galo da Madrugada virar massa que chia na frigideira do asfalto, a delirar feito fosse um mar de gente catatônica. No entanto, nada de bloco nem de passante ao menos aparentando humor de folião. O que surge vez por outra são carros de onde se ouve um som esquisito, como se as notas musicais estivessem todas num ringue de MMA, decididas a matar ou morrer. Mas ela não se dá por vencida e liga o som da sala numa altura capaz de lembrar à vizinhança que chegou o domingo de carnaval.

Sabe como é: em muitas cidades do interior comandadas por prefeitos que entendem o termo cultura apenas pelo lado da agronomia, foi bem fácil deixar o carnaval morrer à míngua, sem nem um frevo para fazer o morto descansar em paz. Dona Berenice só tem sessenta e cinco anos, vem de uma geração que contribuiu enormemente para Momo não se queixar da festa, mas desde cedo entendeu que se a classe política se mostra capaz de confundir Capiba com o sujeito que dá pinotes enquanto toca gaita, na feira, rezando por uns trocados para a cachaça, o único jeito é não deixar o carnaval morrer no coração. Faz a própria fantasia, separa os discos com paciência e ainda alguma comida e bebida, para o caso de alguém com o mesmo espírito aparecer na casa. Se um filho de Deus dá o ar da graça, então deve ao menos cantar um pouco e fazer uns passos de frevo para merecer o drinque e o tira-gosto.

Tem horas que desanima – ninguém é de ferro – mas logo se refaz e volta ao posto na janela, esperançosa de ver surgir ao menos um papangu ou uma la ursa batendo em latas velhas. Talvez umas crianças brincando de se molhar com jatos de lança-água. Ninguém, exceto alguns bêbados que se embriagaram por outros motivos Então aumenta o som e mergulha fundo na estratégia salvadora – lembrar que, no fim das contas, resta o compromisso de brincar o carnaval dentro do coração, sem mais preocupações com a realidade, para que ele não morra. Três dias assim, incansável, sem se deixar abalar nem mesmo pelas chacotas de algum insensível. Ano passado, a rede de TV da cidade vizinha a descobriu. Chegou o pessoal, microfone em punho, mas na hora h desistiu da entrevista alegando falta de intimidade com as câmeras, ficava aflita, sem jeito. Mas dançou e cantou para equipamentos desligados, indiferente à frustração que provocara.

Uma pena, porque ela agora se sentia mais preparada para a situação – andou treinando sozinha, ajudada por um microfone invisível -, mas supunha que o tal canal de TV havia se irritado com a recusa e não arriscaria novamente. Pena mesmo. Logo agora, que sua indignação chegara a um ponto capaz de aumentar a audiência de qualquer emissora. Pensava assim, lembrando que quanto mais as pessoas soltam os cachorros, na televisão, mais os apresentadores estimulam o desabafo. Pois estava enganado quem pensasse que iria falar mal dos prefeitos, coveiros do carnaval. Só gostaria de saber “que tiro foi esse” que deixou os foliões órfãos de uma música tão bonita quanto a de raiz. “Notas musicais se despedaçando como numa arena de MMA e ninguém faz nada. Agora veja o senhor – diria ela – está tudo tão dominado que nem Rita Lee pergunta mais ´o que foi que aconteceu com a Música Popular Brasileira´. Aonde vamos parar?”. Há dias dona Berenice lamenta a falta de microfones que ampliem sua indignação, mas já providenciou a fantasia para o próximo domingo. 
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