Em Foco

Duas histórias que riem de um velho preconceito

Crianças admiram garis e famílias realizam sonho de festa de aniversário onde eles são os heróis

Publicado em: 10/01/2018 07:49

Ainda lembro perfeitamente da cena: era meio da tarde e eu estava com a boca mantida aberta por força de aparelhos, enquanto o dentista se dirigia para o colega ao lado, em uma das salas de atendimento de conhecida clínica odontológica, no bairro das Graças. Contava ao interlocutor, com muita veemência, a proibição imposta à filha de tentar uma vaga no curso de psicologia, porque “não gostaria de ter filho se matando de trabalhar para ganhar uma miséria”. E ressaltou: “Ela vai escolher uma profissão que dê muito dinheiro, porque eu não quero sustentar ninguém, depois da universidade”. Aquilo me pareceu tão estúpido que eu, sem condições de dizer uma palavra, franzia a testa o tempo inteiro, em sinal de protesto, e o sujeito entendia a reação como se algo no tratamento estivesse me incomodando. A postura foi de tal modo desastrosa que decidi continuar as sessões seguintes com outro profissional, alguém que não tivesse a infeliz ideia de verbalizar tanta bobagem. Dias a fio pensei que o mundo andasse mesmo para trás ou na contramão das necessidades, pois, como chegariam ao futuro pessoas educadas por pais com aquela cabeça? No entanto, duas crianças que viraram notícia, nesta semana, mostraram que as sementes da transformação, embora tímidas, germinam por aí.

Gabriel Branco Barros, 5 anos, de Nova Friburgo (RJ), e Petros Barros, 4, de Belo Horizonte (MG), nem se conhecem mas dividem uma admiração pouco comum – pelos homens que fazem a coleta de lixo nos seus municípios. O segundo, filho de pais engenheiros, foi tão bem acolhido quanto o primeiro quando disse que gostaria de ter uma festa de aniversário com decoração em homenagem aos inusitados heróis. E então, não é somente incomum o desejo das duas crianças como o apoio incondicional dos pais para satisfazer-lhes o sonho, sem a menor sombra do preconceito que ronda as profissões. Ambas as festas foram lindas, a de BH, inclusive, com pai e filho vestidos de gari e a do Rio, com direito à presença de dois homens da empresa de limpeza urbana. Ah, lembrei-me logo do tal dentista e no que pensaria lendo aquilo. Certamente nunca foi apresentado a uma das teses mais defendidas pela própria psicologia – a de que pais não podem projetar suas expectativas nos filhos, devendo se limitar ao papel de orientadores das escolhas dos rebentos, para vê-los estimulados, satisfeitos e confiantes em relação a elas. Tanto no campo pessoal quanto no profissional.

Seguindo este raciocínio, é fácil deduzir a existência de mais pais que (consciente ou inconscientemente) seguem o padrão de repetição do modelo sob o qual foram criados, enquanto uma minoria parte para corrigir ou restaurar aquilo que lhes chegou como fator de sofrimento – não ter direito de fazer as próprias escolhas, entre outros. Mas, independentemente do que leve a qualquer dos dois comportamentos, vale é saber que há clara tendência a uma compreensão maior sobre a importância de se respeitar a individualidade, pois, afinal, é preferível ter filhos felizes do que cativos, frustrados, inseguros e dependentes.
A admiração dos dois garotos por ofício tão depreciado, no Brasil, e a compreensão dos pais de ambos, consolidada através do apoio oferecido sem qualquer julgamento, emocionam. É como se as histórias ajudassem a alargar a pequena fresta por onde teima em passar um raio de esperança. Mas, deixando a psicologia de lado, o bom senso por si só é suficiente para levar à mais óbvia das conclusões: crianças que recebem dos pais orientação e afeto, que veem suas escolhas apoiadas, têm tudo para ser adultos ajustados e de bem com a vida. Sem gente assim, a ideia de mundo melhor pode morrer até na primeira visita ao dentista. 
 
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